Um promotor que compunha a banca examinadora de Direito Penal na prova oral do concurso para o Ministério Público do Estado levantou a seguinte questão sobre estupro: num hipotético ataque contra uma mulher, em que os agressores iriam se alternando, dois seguram, outro aponta a arma, outro fica com o carro para assegurar a fuga, cabendo ao quinto “a melhor parte, a conjunção carnal, dependendo da vítima” – em outras palavras, o estupro, e mesmo assim dependendo da vítima, se atraente ou gostosa.
Logo a plateia se levantou, irritada com o promotor pelo desprezo com a figura feminina e vociferou: “Quando um membro do Ministério Público, cuja função é controlar a legalidade, banaliza a violência sexual e objetifica o corpo da mulher a ponto de se sentir confortável o bastante para dizer o que disse, em prova de concurso público gravada, temos certeza de que estamos longe de chegar a um nível civilizatório em que sejam respeitados os direitos das mulheres”.
Não basta só o enquadramento adequado em legislações punitivas quanto à violência contra a mulher em todas as suas modalidades. A cultura do estupro é um arranjo simbólico na fala cotidiana que preside os atos de linguagem do homem e que continua a inspirar e a fazer parte do imaginário de suas brincadeiras sexistas. Como a parafernália de jogos abusivos com que se locupletou na relação com as mulheres, ao longo da evolução da Humanidade, ficou gravada no inconsciente coletivo do homem, por vezes, o autor nem se apercebe de que está contribuindo para a cultura do estupro.
O promotor, em sua defesa, o que já seria uma aberração, alega que “ficar com a melhor parte” referir-se-ia à opinião hipotética do próprio praticante daquele odioso crime contra a dignidade sexual. Ou seja, interpretou, lato sensu, que o estuprador devia estar pensando como todo e qualquer homem, com o promotor apenas se incorporando a esse papel para emprestar maior dramaticidade e, naturalmente, mais cafajestismo.
Disserta o promotor na peroração: “Da mesma forma que para o corrupto a melhor parte ou exaurimento do crime de corrupção é o recebimento da propina; da mesma forma que, na opinião de um estelionatário, a melhor parte ou objetivo do seu crime é a obtenção da indevida vantagem, na mente de praticantes dessa repugnante casta de crimes sexuais, a satisfação coercitiva de lascívia é o desiderato odioso perseguido”. Gostam de falar bonito ou empolado para encobrir seus verdadeiros desejos e impedir, no subterfúgio, de dar vazão aos seus impulsos psicopatas de violar o direito de outrem, revelados no prazer que extraem de depoimentos coercitivos de suspeitos, sem que sejam ameaça para a sociedade. É como se dispusessem do corpo de uma mulher a seu bel prazer. Se pudessem, dariam tapas na cara do depoente por ter cedido com tanta facilidade.
Quanto ao “dependendo da vítima”, quis fazer menção à eventual capacidade de resistência física da imaginária ofendida como, por exemplo, a hipótese de a mesma ser graduada lutadora de artes marciais – ui!
A cultura do estupro arregimenta não só promotores. Inicialmente comendo com os olhos quem ouse atravessar o caminho de todos os escalões sociais do homem. Mas o pior mesmo é negar o crime já formado e caracterizado em pensamento, que nitidamente se detecta em atos falhos ou na incúria de desgovernados à mercê de um aplicativo de milênios que atualiza o cérebro dos homens, mestres em mudar para continuarem os mesmos. Sempre navegando na cultura do estupro.
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