Amélia Brandão Nery (1897-1983) parecia fadada a sofrer o mesmo destino de Eurídice Gusmão, personagem do livro de Martha Batalha que ganhou corpo inesquecível no filme de Karim Aïnouz, “A vida invisível” (2019). Uma jovem que queria se tornar pianista, mas que se vê obrigada pelos costumes da época a casar e constituir família, abdicando do prazer de tocar por exigência do marido, aos 17 anos. Menos mal que ficou viúva aos 25 anos, depois de lhe dar 3 filhos, e o piano virou meio de vida. E nasceu mais uma estrela para o Brasil, que pouco usufruiu de seu talento.
Compôs mais de 200 músicas numa carreira tão espetacular quanto cheia de altos e baixos. Nos anos 1930, a pernambucana tocou para seu ídolo Ernesto Nazareth, o maior pianista e compositor de todos os tempos no período clássico da música brasileira e que terminou seus dias na Colônia Juliano Moreira. Apresentou-se para o presidente Getúlio Vargas, amante das belas artes. Fez turnê por 21 países e todos os Estados brasileiros. Vinicius de Moraes e Pablo Neruda reverenciaram o seu talento.
Até que veio nova pausa quando sua filha se casou e se mudou para Goiás de modo a ensiná-la sobre os rudimentos de uma boa esposa. Voltou reinventada como Tia Amélia, graças à cantora Carmélia Alves, dos gloriosos tempos da Rádio Nacional. Quem não se lembra, se gozar da idade acima do sexagenário, de uma senhorinha de cabelos brancos presos num coque e um sorriso constante no rosto? Que gravou 10 discos de 78 rotações e 7 LPs com suas polcas, valsas e maxixes, sempre executadas com um suingue gostoso e “pererequice e malícia saltitante”, segundo o polêmico crítico José Ramos Tinhorão. Seu último LP saiu pela Discos Marcus Pereira, já com mais de 80 anos.
Chiquinha Gonzaga foi a vanguarda da mulher na música popular brasileira nos seus primórdios, mas não seria depreciativo situar Tia Amélia à sua retaguarda, mesmo porque corria a tradição de se impor à mulher esconder a sua cara e o seu dom para que ficasse claro sua função reprodutora e mantenedora da sociedade.
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