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A ESPERANÇA PREVALECENDO SOBRE O SUICÍDIO

Vou me debruçar sobre a biografia de Hannah Arendt, escrita por Ann Heberlein, no capítulo 11, “O significado da esperança: sobre o suicídio”.
Hannah Arendt cogitou tirar sua própria vida enquanto presa no campo de concentração de Gurs, na França. A lama, os ratos, a fome constante, a exposição à epidemias, os alojamentos apertados e sombrios, o cheiro importuno dos corpos das outras mulheres. Mas não foi isso que a fez pensar em suicídio. Era algo maior e mais complicado: o mundo havia desembocado numa conjuntura sem alternativa ao tempo do nazismo, durante os anos 1930. E quer mais razão para não continuar vivendo do que ficar encerrado num campo de concentração? Cujo comando periodicamente enviava seres humanos aos magotes para morrerem nas câmaras de gás e seus corpos sendo incinerados.
E o que acontece ao homem ou mulher que não nutre mais esperanças? Finda por desistir. Todavia, a capacidade de imaginar uma existência além da realidade presente é decisiva para a sobrevivência do ser humano. Apenas quem possui o dom da esperança consegue vencer atrocidades e barbarismo.
Mas o problema não consiste nas circunstâncias tornarem a vida insuportável, mas sim faltar sentido ou propósito. Mesmo para alguém sem fé ou sem religião ou mesmo ateia, como Hannah, e, portanto, não havendo Deus que a proibisse ou qualquer argumentação de ordem teológica ou espiritual ou atinente à cultura judaica que a impedisse de se suicidar.
Na condição em que ela se encontrava encerrada num campo de concentração, a morte era altamente palpável, como ameaça ou como possibilidade – o que a fez considerar, anos mais tarde: “Se a história do mundo não fosse tão perversa, seria maravilhoso viver”. A conclusão a que chegou foi que o suicídio seria uma solução ou uma resposta se apenas se resumisse a um problema individual. Mas a situação de Hannah e dos outros detidos era consequência de profundas mudanças políticas no planeta de causas ideológicas, não mais podendo subsistir colonialismo, escravidão, monarquia, império, aristocracia, nobres, sangue azul, mas surgindo no lugar o nazismo e o fascismo.
Hannah Arendt, judeus, comunistas, prisioneiros políticos, eslavos, ciganos, testemunhas de Jeová e homossexuais formavam a coletividade não ariana no campo de concentração. Até que surgiu a proposta de suicídio coletivo como forma de protesto. Mas a morte corresponderia a exatamente fazer o jogo do opressor. Tampouco repercutiu em face de predominar no ser humano a preservação da vida, a vontade de permanecer vivo e de lutar, o que o desperta para a realidade a ser enfrentada.
A esperança parece ser decisiva para a resistência do ser humano ao mal, a única arma na luta contra o impulso de desistir. É a capacidade de imaginar algo diferente, algo além do presente, num tempo e num lugar melhores do que aquele em que você se encontra.
O que fez Hannah Arendt aguentar a intromissão da morte e do mal entre ela e a vida que queria viver? Como será que ela sobreviveu ao campo de concentração e ao suicídio?
Foi sua capacidade de temer o pior, a desconfiança, que por diversas vezes abriu seus olhos e salvou sua vida. Ela nunca deu de ombros, torcendo para que as coisas se resolvessem sozinhas. Não acreditava que aquela sensação desagradável que percorria seu corpo de cima a baixo, machucando sua alma, desapareceria dentro do campo de concentração. Nunca foi ingênua a tal ponto. Possuía o dom de combinar a disposição de esperar pelo pior com uma fé inabalável em seu próprio poder de influenciar sua vida. Não se deixando ser sugada pela desesperança, nem muito menos levada pelo acaso.
Em 1960, Adolf Eichmann foi capturado na cidade de Buenos Aires pelo Mossad (Instituto para Inteligência e Operações Especiais de Israel) e levado até Jerusalém, para o que deveria ser o mais midiático julgamento de um nazista desde o tribunal de Nuremberg. Apontado como um monstruoso carrasco nazista, responsável pelo planejamento e operacionalidade da chamada “solução final”, e um dos principais responsáveis pela deportação dos judeus europeus para os campos de concentração durante o Holocausto.
Presente ao julgamento, o que redundou no livro “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt considerou que ele não possuía um histórico ou traços antissemitas e não apresentava características de um caráter distorcido ou doentio. Ele agiu conforme o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e movido pelo desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática. Cumpria ordens sem questioná-las, com o maior zelo e eficiência, sem refletir sobre o bem ou o mal que pudessem causar.
É justamente nesse ponto que Hannah Arendt descobre a banalidade do mal. Nada que se relacione a algo demoníaco ou mal premeditado ou simplesmente ressignificar o desejo. Numa mescla brilhante de jornalismo e reflexão filosófica, uma das maiores pensadoras do século XX investiga a capacidade do Estado de igualar o exercício da violência homicida ao mero cumprimento da atividade burocrática. Como condenar um funcionário público, honesto e obediente, cumpridor de metas, que não fizera mais do que agir conforme a ordem legal vigente na Alemanha daquela época?
Hannah analisa o Mal quando este atinge o tecido de segmentos da sociedade ou o próprio Estado. O Mal não seria inerente à natureza intrínseca dos seres humanos ou já nasceria impregnado em nosso espírito. O Mal é político e histórico, engendrado por homens e se manifestando apenas onde encontra espaço institucional para isso. Em virtude de uma escolha política.
A causa disso é a dificuldade em se lançar numa reflexão mais ampla ou mesmo articular o pensamento afim, a preferência pelo raso, abdicando do espírito humanitário que alarga o conhecimento. O nazismo sempre dependeu da mediocridade, à espreita de cidadãos que não conseguiam ir muito longe para refletir sobre o papel que desempenhavam na sociedade, deixando-se levar pela lavagem cerebral do rolo compressor hitlerista. Em suma, quanto mais a pessoa não se aprofundar e optar por se manter à superfície, mais provável ceder ao mal. Por não se exercer, se trabalhar e sequer elaborar seu espírito crítico. E, ao não assumir a iniciativa própria de seus atos, acabou reproduzindo a monstruosidade atípica dos crimes nazistas em tão pouco tempo.
Basta, portanto, resistirmos à banalidade do mal ao não nos permitirmos ser arrastados pela platitude e ao caráter dos sem expressão e medíocres, principiando a pensar em abraçar outra dimensão que não o horizonte de sua vida cotidiana.
A tese difícil de aceitar é de só conseguir enxergar antissemita fanático em nazistas que não pertenciam à cadeia de comando, que só teriam na vida o propósito patológico de exterminar judeus, e nunca a ambição por progredir em suas carreiras e subir na vida, a despeito do que o nazismo fazia à sua volta, fingindo que nada estava acontecendo.
Nosso mundo ainda é bem capaz de produzir muitos Eichmanns. Sem que sejam percebidos como tal, gente terrivelmente normal, peças decisivas para arquitetar uma máquina que se aproprie das mentes da coletividade, sendo necessária uma permanente vigilância para garantir a defesa e a preservação de nossa consciência.
O que não perderíamos se Hannah Arendt tivesse se suicidado no campo de concentração?

Fonte: HEBERLEIN, Ann. Arendt. Entre o amor e o mal: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
ARENDT, Hannah. “Eichmann em Jerusalém”. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Site Wikipédia de 09/06/2021, título da matéria: EICHMANN EM JERUSALÉM. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Eichmann_em_Jerusal%C3%A9m

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Antonio Carlos Gaio
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