Que tal você acordar nua, ao lado de com quem dançou a noite inteira, seu tipo inesquecível desde que começou a menstruar, e dar de cara com outro homem? Aquele que te arrancou lá do outro lado da lua e te jogou no inferno astral de ver sonhos se consumirem no fogo que alimenta paixões. Ver derrubado o ninho do amor que a deixava confortável, nascido de sua cria na imaginação. O homem que tanto idealizou. Enquanto ela não o conheceu, o imaginou do jeito que conviesse às suas necessidades e anseios, desenvolvendo ao máximo seu potencial em fantasias, em face da realidade não ter batido à porta e confrontá-la com o sapo que só coaxa à noite, quando todos os gatos são pardos.
Esse homem, embalado pelo sono dos deuses, deitou no seu passado. Mitificado, às custas da imagem de um índio, com seus cabelos longos e lisos, de tez morena, trançado por faixas adornando o jeans rasgado, parecendo estar no palco o tempo todo. Nos seus melhores tempos, atirava em dez para alcançar uma, falta de critério apenas do conhecimento dos homens. Tese não abraçada por elas, se estava sempre bem-acompanhado é porque era um homem gostoso.
O bom comedor ofende apenas o politicamente correto, o desejo exige clareza na expressão. Explora a repressão de mulheres que vacilam. Em sua fase mais crônica, acorda tomando cerveja e necessita de uma doméstica para pôr ordem na casa, pois sua esposa o expulsou por maus costumes. Entre uma espanada e um cafezinho, tenta colonizá-la inspirado em Karl Marx, que, ao proletarizar o amor, escreveu “O Capital” e celebrizou o comunismo.
Trata-se de um homem sensível, sem ser gay, a cobrança eterna dos homofóbicos. O hippie índio é um folclore da realidade, para que a tradição represente a vanguarda. Apegou-se ao modelo. E acreditou ser um deus caboclo. Um feio bonito. De olhar esbugalhado em noites queimadas na insônia, observando o cosmos.
“Você é uma das maravilhosas mulheres que fizeram parte da minha vida”, consta do seu repertório. Por que distanciar tanto assim as mulheres? Compensando-as com a sua importância. Lançando-as em parcerias itinerantes e intermitentes, que resultam em não ter nada nas mãos, quando teriam o cosmos por dividir. O que o atemoriza, pois entende como feitiçaria de um espírito livre que quer se libertar e precisa se alimentar do amor.
Hoje o índio virou um homem comum, com horror do passado que construiu. De não se cansar de seduzir. Reclama da filha que não o curte, “esse homem que eu fui”. Confessa não mais dividir sua cama de solteiro com nenhuma mulher fixa, o sexo foi abduzido, o vício do reafirmar-se na conquista e gozar as mulheres sempre dispostas a se oferecerem para ele.
Não caiu no desespero, procura reparar os estragos elaborados com o requinte de um artista. E ego é do que o artista se alimenta. Para repetir cada vez mais e mais, mecanicamente, o seu modelo. E acabar nos braços de uma nativa, ao longo de uma noite de seja qual for a lua, para amenizar a solidão transitando pelas praias de Caraíva, onde a Bahia atesta sua verdadeira fama. E serve como refúgio para o alternativo dispor sua inteligência de psicólogo a serviço de projetos de cidadania mixados à arte indígena. Um mini-universo onde pudesse ser mais valorizado.
Um cemitério de elefantes. Um retorno à natureza para que ela o acolha e lamba suas feridas. O apego ao desejo remeteu-o à solidão. Impediu-a de abrir a boca sobre seus amores, iria se comparar, irremediavelmente, e não suportaria. E a nativa sacou que não ia mais rolar com sua experiência ancestral indígena. Antes dele, que caminha a passos de cágado. E procurou evitar qualquer iniciativa desavisada para não constranger, fazendo-o suspirar de alívio. O que o encorajou a pedir-lhe que levasse embora suas angústias para os mares de Curuípe e Corumbau.
O índio torna a mulher especial no distanciamento, não na presença, no dia-a-dia, e a leva a chorar no café da manhã, compulsivamente, por ver o mito no fundo do poço e a se mirar no espelho como sua sombra. O espectro de amores idealizados que minguam no rastro do desejo de ser muito amada e querida, de “se você quiser me domar, me ame como a um animal”. Mas o índio não banca nem relação animal, por enxergar nela uma atraente conseqüência perigosa de que não daria conta.
O índio disfarça a vida inteira à cata de um relacionamento sem formato, mas, de fato, desfigura o seu caráter. Rejeita a mulher, ignora sua missão de agregar. Seu cinismo conjuga reconhecer ter sido um canalha e agora não querer ser mais. Se benze todos os dias por ainda estar vivo, graças à proteção dos orixás.
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