Nelson Rodrigues é o responsável pela transição do ósculo machadiano para o beijo das escravas do amor cujo destino é pecar, pondo à mostra a faculdade incrível de dissimulação da mulher como resposta ao provedor soberano, não permitindo nem que seu próprio marido a beijasse em frente aos outros, supervalorizando o recato. Pureza era sua obsessão.
Como Nelson nos libertou do bom gosto ao considerá-lo uma virtude de quinta classe, hoje estamos à vontade para confessar quão penoso é dar os primeiros passos no namoro. Só por causa do beijo. Quem se inicia ou é iniciado prefere escamotear que se atrapalha com o nariz que se intromete no meio do beijo, com a língua que não sabemos onde enfiar, se no palato ou na gengiva, o que fazer da saliva – engolir ou saborear?-, e a respiração que ofega na hora errada e corta o barato do fôlego. Se inspira antes de expirar por amor. Sem contar os dentes que não sabemos onde esconder e como controlar sua sanha assassina.
Acabamos nos acostumando a fechar os olhos e a beijar do jeito que quiser, estalado, molhado, lingual, mordido de furor, antropófago, ou eternamente longo. Até que a boca não fique mais inchada. Nelson Rodrigues consagra esse momento como o verdadeiro defloramento, a inequívoca posse franqueada ao público: ela suplicou tanto por esse beijo que desmaiou sobre o capô do carro quando ele pespegou-lhe no meio da rua.
Por prescindir de combinação prévia, o beijo avança na intimidade mais desavergonhadamente que a penetração distante do controle e acompanhamento dos seus olhos. O encaixe não depende da angulação necessária ao ajustamento dos corpos. O vigor pretendido não corresponde ao vigor alcançado, a resistência oferecida é maior ou menor em função da estranheza, do não querer, do cheiro que exala e afasta, da lubrificação não adequada, da capacidade de absorção, e do mistério que tudo isso comporta.
Pois o beijo é mais que isso tudo, implica em facilidades de ser arrancado e ofender menos os brios de quem o rejeita. Morder machuca infinitamente menos que o estupro, além de poder reverter a vingança que se saboreia fria para o prazer em que se refestela quente. Ninguém vê nada de mais no defloramento através do beijo antropófago, tão perfeitamente assimilado, que restou a nostalgia do beijo doce.
Ficar com fulano é beijar, beijar cada vez mais, para ver qual é o seu gosto, se de namorado, scort ou futuro marido. Dentre essas incursões, o beijo pode ser acionado por uma simples pisada no pé embaixo da mesa, seguida de um carinho com o mesmo. Pode ser ativado com uma mão firme puxando a nuca e soprando no seu ouvido que eu te amo. Pode tocar o alarme ao olhá-lo com cara de Mary Poppins e siderá-lo com a boca entreaberta. Ao longo do beijo você pode estar sendo totalmente vasculhada pelo computador em frente que a beija examinando suas intenções. Pode deixá-la completamente apaixonada, pelo beijo, e no dia seguinte se aperceber que ele é totalmente incompatível. O beijo sem graça desmancha a fantasia despropositada alinhavada a respeito.
Não existe beijo descomprometido, é uma descarada mentira. A bitoca é o não reconhecimento da orgia que rola no inconsciente coletivo de devassos que se reprimem para não mexer em casa de marimbondo, afinal a picada nos desperta para a infusão de beijo pra lá e beijo pra cá, uma aproximação que, por ser excessiva, não consegue dar conseqüência aos desatinos que necessitamos para nos inspirar e fazer poesias.
E só o beijo consegue rimar cré com cré, lé com lé, e nos remeter a Romeu e Julieta e à utopia do amor eterno. Longe de ser pudico, não compete com a entrega carnal, nem trafega na mesma freqüência do orgasmo, ele nos empurra para um túnel escuro onde se pode ver luz no fim, no fim de tempos que não conseguem apagar o encanto, o charme e a inveja de um casal apaixonado que se beija sob a luz de um poste, esquecido de nós.
Devido à dimensão que o beijo alcança, o medo é a única forma de manter o calor humano à distância, por estarmos irremediavelmente condenados ao contágio.
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