Quando criança, ele se entediava com uma constância de dar dó. O tédio começou por fazê-lo tropeçar com as mãos nos brinquedos sem conseguir criar o lúdico na arte da travessura. E continuou ao longo de toda a vida, pontuado pela insônia. É um tédio que beirava o pânico se elevado à angústia, captado nas sessões em família, nas noites estreladas, na diversão em grupo, desviando sua atenção nas audições de música clássica e ópera.
No entanto, o amor à leitura e ao estudo dos símbolos o ajudaram a driblar essas ondas que se tornaram cada vez mais raras à custa de suas descobertas que poucos tomaram conhecimento.
Qualquer imagem, gesticulação, hábito, combinação de roupas, expressão facial, enfim, o nosso ritual, são fenômenos culturais que dizem mais do que o vernáculo expresso através dos diferentes idiomas. Têm maior significado que as palavras. Haja vista o que se escreve nos e-mails se confrontado com os missivistas de outrora em suas cartas que demoravam meses para chegar. A despersonalização a bem da concisão versus o barroquismo que não permite a reação imediata.
O que mais apreciava era a contestação original e bem-fundamentada rompendo com o dogma mais cultivado pela humanidade por tantos séculos: interpreta-se uma página de um livro, segundo o que a escrita contém e encerra em seu significado. A cada leitura, abre-se um campo magnético, eis que um imã atrai todas as leituras anteriores, todos os outros textos afins e desafinados para lá acorrem, todas as lembranças e alusões confluem, mesmo aquelas em que o autor jamais pensou. Mas que ocorrem ao leitor. Abrindo infinitas possibilidades para todos nós, pois foge ao controle do autor a interpretação do leitor.
Essa carta de alforria que o distancia da inteligência enclausurada na torre de marfim dá início a uma interatividade com o universo que tenta construir o seu inefável dia, liberta o desejo e propaga o erotismo no pleno exercício do gozo da liberdade de expressão. Quem conta uma história, deseja e quer ser desejado, seduz, atrai e trai, jura em vão, mente e passa pra trás, provoca, desrespeita e é correspondido, para gozar de alívio, e, finalmente, trazer alguma nuvem levianamente passageira. É o prazer incompreendido por gente que acha que isso só tem a ver com piadinhas que façam rir, não se deixando penetrar pelo saber, arrebatar pelos sabores da narrativa, a paixão pelo sentido mais intuitivo, o tesão pelo “conhece-te a ti mesmo”.
É deixar-se postar no canto de um parque a apreciar as folhas de outono despencarem-se das árvores e fechar um olho enquanto observa apenas com o outro. Reveza. A percepção sutil vê um plano se achatar sobre o outro, um tronco se aproximar mais para a direita enquanto galhos desnudam-se sem o mínimo pudor, para ver as coisas de modo diferente. Bastando apenas querer.
Entender isso é tão difícil quanto Roland Barthes morrer aos 65 anos, depois de tanto tédio ultrapassado para atingir o auge de sua capacidade criadora. No trajeto curto entre o trabalho e a casa, o trivial colheu o seu destino, atropelado por um carro que avançou o sinal. Sem documentos, fez jus a uma gaveta no Instituto Médico Legal como indigente, enquanto amigos buscavam-no na barata tonta da burocracia.
Uma revoltante ironia. Estudou signos e sinais, indícios e identificações, e acabou sendo alvo fácil de celerados que não respeitam o sinal e não suportam a ausência do mais elementar signo de identificação social: a carteira de identidade. Uma vingança dos signos contra o homem que mais pôs a descoberto os totens civilizatórios que decifram maquinações, tramas golpistas e a geografia das conquistas, a cabala da vida.
Indício claro de entidades mais poderosas que nos assistem, sem intervir, sem se misturarem, a sinalizar que ainda não estamos preparados. Irão ser necessários mais sacrifícios absurdos até que a humanidade dispense a concatenação de sílabas e pare de evitar o blábláblá em torno do amor, religião e poder – uma disputa estéril. Puxe o meu pé de noite, Barthes, para que essa gente comece a acreditar que sinais não são alma do outro mundo.
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