Do profeta Jeremias: “Maldito seja o homem que nos outros homens confia”. Os índios tupinambás matavam seus inimigos para comer sua carne e absorver sua bravura e coragem, como parte de um ritual antropofágico de guerra. Por outro lado, ser devorado era considerado uma das formas mais enobrecedoras de morrer porque significava a valentia do guerreiro e o seu espírito forte. Hans Staden informou que não era por fome conforme eles arrotavam quando se banqueteavam com carne humana, e sim por ódio e grande hostilidade quando, durante a guerra, gritavam cheios de raiva: “Que todo infortúnio recaia sobre você, minha comida, minha refeição”. Portanto, entre humanos, antropofagia é canibalismo, por comer a carne da própria espécie.
O tipo louro do alemão Hans Staden, muito diferente do tipo dos portugueses, tão raro na terra do Brasil. Bípede implume, de olhos azuis e cara vermelha como presunto. Não nasceu para ser árvore, e sim sair pelo mundo afora e bem conhecê-lo, já que todos nós temos um destino a cumprir na vida. Especialista em arcabuz, engajou-se como artilheiro num barco armado de canhões que se destinava ao Brasil, em 1548, com o intuito de atacar embarcações francesas, país que estava em disputa com Portugal pelo monopólio das terras descobertas no Novo Mundo, embora não existisse guerra declarada entre as duas nações.
Terra naquele tempo era de quem pegava primeiro. A história da Humanidade é de uma pirataria que não tem fim. Batalhas, pilhagens e naufrágios. O mais forte, sempre que pode, extermina o mais fraco. O Brasil pertencia aos índios dentre suas diversas tribos, e perderam a terra que até então haviam possuído pelo poder que é concedido ao mais forte e melhor armado. Os franceses procuravam se aliar a todas as tribos inimigas dos portugueses para negociar pau-brasil, algodão, pimenta, ornamento de penas, macacos e papagaios. Em nome de questões mercantilistas, portugueses e franceses usavam os índios como aliados e se valiam de inimizades ancestrais entre eles para perpetuarem suas desavenças coloniais. Os conquistadores do Novo Mundo, tanto portugueses como espanhóis, eram mais ferozes do que os próprios índios, chamados de selvagens por Hans Staden. Só os guiava a cobiça, a ganância, a sede de enriquecer, não vacilando em destruir culturas inteiras, como os astecas, maias e incas, povos cuja civilização era bem adiantada. Por sua vez, os índios nunca suportaram a escravidão, preferiam a morte.
Na segunda viagem ao Brasil, foi oferecido a Hans Staden cuidar do Forte de São Vicente (São Paulo), em construção, e defender a colônia de incursões de seus terríveis inimigos, os tupinambás – povo orgulhoso, muito astuto e sempre pronto a perseguir e devorar seus antagonistas, pois grandes apreciadores da carne humana. Eis que Hans Staden foi capturado, tripudiado, escarnecendo de seu choro e pedido de misericórdia, com as mulheres lhe desferindo bofetões e arrancando punhados de sua barba, empurrando-o para dentro de uma cabana e o deitando numa rede, mas continuando a insultá-lo e a maltratá-lo – “vingamo-nos em ti do que os teus filhos fizeram aos nossos”.
Hans Staden se defende, não era português. Os tupinambás não lidavam bem com a mentira e a falsidade, se considerando traídos pelos portugueses, que os agarravam e os entregavam aos tupiniquins, seus maiores inimigos, para que os comessem. Eis que chamaram um francês para atestar sua origem pátria, que o condena à execução e deglutição. Hans passou a ser exibido nos domínios dos tupinambás, que abrangia parte do litoral paulista e sul do atual Estado do Rio de Janeiro, como um animal raro, de cabana em cabana, dando sequência ao ritual antropofágico. Cercados pelos índios, os prisioneiros são obrigados a cantar, dançar, a bater no chão com o pé, para que o ruído dos chocalhos, amarrados às suas pernas, fosse marcando o compasso. Enfim, a participar de seu cerimonial de encomenda de corpo com os índios pondo-os na roda, literalmente. Quando não eram forçados a beber com os selvagens e assisti-los a devorarem seus companheiros, estampando desespero e dor diante do fim que os esperava. Com direito a discurso de caráter heroico e de exaltação à cultura autofágica, se o sacrificado fosse índio, seja por parte dos que iriam morrer como também de seus captores.
Ao primeiro golpe, a vítima vai ao chão, com o crânio esmigalhado por um senhor tacape. Antes lhe cortavam as sobrancelhas e depois a barba. Quem o matasse com a porretada, herdaria o nome da vítima, como se fora um penacho. Imediatamente, as índias descamavam a pele para só cozer a carne, sob grande júbilo, assando em separado as pernas, braços e costas, sem deixar de lado a cabeça e as vísceras – os miolos e a língua para as crianças.
Confrontado com o grande morubixaba Cunhambebe, Hans Staden encheu-o de elogios exaltando sua coragem, a título de abrir caminho para a comutação da pena. Ele, por sua vez, pavoneou-se andando à sua frente, cheio de orgulho, e regozijando-se dos muitos índios e portugueses que já havia devorado. Se um animal irracional raramente devora os seus semelhantes, por que então um homem iria devorar os outros? Ao olhar fixo para a lua cheia, Hans Staden conseguiu convencê-los de que seu Deus estava zangado com eles, por insistirem em comê-lo. Provinha daí o rosário de doenças que acabou por vitimar oito pessoas da família do morubixaba encarregado de decretar o dia de sua morte. O morubixaba, nesse momento, reiterou o pedido a Hans para seu Deus livrá-lo da morte, fazendo-o prometer que iria poupá-lo. Quando sarou, a notícia se espalhou por entre os morubixabas de outras cabanas e os demais índios, que começaram a sentir medo de que o Deus de Hans os castigasse, e a respeitá-lo como espírito curador.
Porém, para os tupinambás libertá-lo, somente uma caravela abarrotada de facas, tesouras, machados, pentes e espelhos, e com seu pai e irmãos vindo buscá-lo – o prisioneiro lhes pertencia. Durante o cativeiro de 9 meses, Hans Staden tentou valer-se de sua inteligência com suas manhas e artimanhas, como um alemão fingindo que era francês ao negociar seu retorno à Europa com uma embarcação lusitana, e se entendendo em português, seguro de que os índios só falavam sua língua. Em outra oportunidade, atirou-se ao mar para nadar e alcançar uma embarcação francesa fundeada na costa; mas não o deixaram subir, pois colocaria em risco as relações comerciais com os tupinambás, além do que eles poderiam se vingar. Em agosto de 1554, mês da piracema das tainhas, todos se dirigiam a Bertioga para pescar. Formou-se, então, uma expedição de guerra contra os tupiniquins composta de 43 canoas, 23 índios em cada, num total de quase mil homens, na qual Staden fingiu se integrar de bom grado, escondendo sua contrariedade, na esperança de fugir durante o percurso. Por fim, chegou um navio francês com ordens para resgatar o alemão de qualquer maneira, penalizados com o seu sofrimento, forjando uma versão de dez irmãos terem vindo do velho continente para abraçá-lo, desde que Staden e o seu atual morubixaba captor se dirigissem a Niterói (enseada nas mãos dos franceses).
O morubixaba foi engambelado por Hans Staden, reclamando de sua longa ausência, muito distante de sua família, e que não podiam ficar assim separados; pelo comandante do navio, que agradeceu o bom trato dispensado ao prisioneiro e de terem poupado sua vida, apesar de capturado entre inimigos; e, em tom veemente, pelos dez irmãos, cujo velho pai ansiava por vê-lo de novo. Hans acrescentou que, no fundo, desejava ficar entre os antropófagos, onde fora tão bem acolhido, mas se via impedido pela atitude maiúscula de seus irmãos, não conseguindo resistir ao seu apelo. O morubixaba aquiesceu, desde que voltasse no ano seguinte; era seu amigo, considerava-o seu filho e estava zangado com os tupinambás de Ubatuba por terem querido devorá-lo.
Procedida a entrega habitual de espelhos e demais apetrechos, o navio zarpou em 31 de outubro de 1554, com Hans Staden respirando aliviado com um até nunca mais à terra onde escapou de ser assado e comido! Não sem antes, na saída da Baía de Guanabara, se defrontarem com um barco português, e da troca de tiros de canhão, Hans resultar gravemente ferido, impossibilitando-o de se despedir daquelas montanhas que emolduram o cenário do Rio de Janeiro. Mas chegando são e salvo em Honfleur, na Normandia, em 20 de fevereiro de 1555, cumpridos quase 4 meses sem avistar nenhuma terra, sempre insuflados por um vento favorável, um milagre no mar e dádiva de Deus, como compensação aos sacrifícios impostos a Hans Staden. Naufrágios, combates navais, disputas terrestres acirradas, diversas costas, enseadas, e praias no litoral brasileiro que não sabia onde estava, o desejo de vingança estampado na antropofagia, mas sua natureza era rija, e não devemos desanimar nunca! Livrou-se das armadilhas que a vida nos reserva para que Deus outorgasse a ele a glória de escrever o primeiro livro a respeito das coisas de um Brasil ainda em gestação, a começar pela abordagem sobre o canibalismo.
Fontes consultadas:
1) STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555). Rio de Janeiro: Dantes Editora, 1998.
2) LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho e Hans Staden. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.
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