O escritor francês Gabriel Matzneff, hoje com 83 anos, nunca escondeu o fato de que teve experiências sexuais com meninas e meninos adolescentes ou até mais novos, rotulando-os de o verdadeiro terceiro sexo, título que pertencia aos gays num tempo em que eram chamados de pederastas. Escreveu vários livros detalhando suas proezas e até aparecia na televisão gabando-se delas. “Les moins de seize ans” (“Menores de 16 anos”) era de uma época (1974) cujo painel da mudança moral defendia, em nome da revolução sexual, o direito amplo ao gozo e a prática como uma forma de libertação humana. Divulgavam-se anúncios pessoais de adultos que procuravam crianças para fazer sexo. Impedir a sexualidade juvenil equivaleria a reforçar a opressão sexual. De Roland Barthes e Foucault a Simone de Beauvoir e Sartre, pediam a descriminalização do sexo com menores. Grande parte da elite literária e jornalística da França celebrou sua figura e seu trabalho por décadas, acumulando prêmios em sua carreira.
Matzneff nunca passou sequer um dia na prisão por abusar de menores nem sofreu qualquer campanha contra seus atos. Até aflorar o movimento #MeToo e as pedofilias no Vaticano, neles embutidos o assédio desenfreado do homem para tirar vantagens da mulher e da diversidade sexual, aliás, desde que o mundo é mundo. Para darem um basta.
Eis que Vanessa Springora, num testemunho pessoal, franco e lúcido em seu livro “Le consentement” (“O consentimento”), conta como foi seduzida aos 14 anos pelo insinuante e famoso escritor cinquentão, à época. A garota se apaixonou e, durante muito tempo, acreditou que aquele namoro fosse voluntário até concluir que não foi bem como tudo se desenrolou. Embora fosse evidente que a menina estava pedindo socorro e sua mãe não quis intervir.
Vanessa só se desiludiu quando se inteirou de que Matzneff desde sempre colecionava amores com adolescentes e praticava turismo sexual no sudeste asiático, onde os menores eram vulneráveis. Atrás da aparência lisonjeira de um homem de letras se escondia um predador, em parte acobertado pelo meio literário. Até que as leis na França mudaram em 2018 para asseverar que menores são incapazes de dar consentimento – mas não aplicável em caráter retroativo.
Em “Le consentement” Vanessa Springora distingue a violência sexual objetiva daquilo que ela viveu, o estrupo do assédio: “A violência sexual deixa uma lembrança ruim; é atroz e muito concreta. O abuso, ao contrário, se apresenta de forma traiçoeira, insidiosa, sem clareza. Como admitir, 30 anos depois, que se foi abusada, não se pode negar que foi tudo consentido?” Essas palavras refletem os problemas psicológicos que ela sofreu com o relacionamento e os anos de psicanálise que a levou a se recuperar para escrever o livro com o qual quer contribuir para os debates em tempos de #MeToo.
“Não li o livro porque iria me machucar demais”, justificou-se Matzneff, acusando-a de tentar destruí-lo com material injusto e excessivo e frisando que ela não valorizou a beleza do amor que ambos compartilharam. Vanessa está, em contrapartida, no firme propósito de impedi-lo de seguir sendo cultuado em ambientes que colocam a literatura acima de tudo.
A literatura também sob pressão do assédio sexual, tal como o cinema e teatro.