O Natal e o Ano Novo sobreexistem como a bandeira branca que acena para uma época onde vicejam interesses comezinhos e o pragmatismo impera, cujas regras da competitividade assestadas em uma base econômica implacável abatem mortalmente a amizade, significada na exclusão e solidão que a segue, tangidas por uma ganância que obstrui nossa respiração, torna o julgamento estrábico e trunca o pensamento.
A cada capítulo de novela, amizades fugazes relembram-nos do prazo de validade vencido, um entra-e-sai que vai-e-vem e não nos deixa refletir se estamos sendo subtraídos, chupados ou partidos ao meio, acumulando perdas sem que essas experiências nos tirem do vermelho. Na cadência do pagode se conhece muita gente, a orientação básica é ampliar ao máximo o número de contatos abrindo com 150 nomes o caderninho de telefones, banalizando a palavra amigo em vez de fazer valer o colega ou conhecido. Que dilema transmutar uma simpatia forjada e circunstancial em lealdade amiga e calorosa!
Eis que alguém se aproxima demonstrando ser um amigo afável e solidário, com presença constante em sua casa, disponível para cultivar a tal da lealdade. Mal escondendo uma certa euforia, você retribui e corresponde na cola da amizade, coisa rara, e inicia a dilatação dos canais por onde entra a gordura que nos mata do coração, ressentido pela falta de convívio e intimidade em que expõe seu jeito piegas de ser, dá as suas coordenadas e abre o cofre onde esconde o xis dos problemas.
O abraço de tamanduá aperta o laço quando suas qualidades acabarão por incomodar a seu amigo que o admira e respeita tanto, tanto que evidenciam tudo o que tem de mal resolvido e não possui na vida. O simplório perde as estribeiras só de pensar que gozar da intimidade lhe dá o direito de fazer, dizer e pedir o que é vedado a outros. Na maior das inocências, se assegura do carimbo no passaporte, o amigo sempre irá compreendê-lo.
Montesquieu enquadrou a amizade num contrato segundo o qual nos comprometemos a prestar pequenos favores para que retribuam com grandes, na linha do faça bem a mim, meu filho, que Deus te dará em dobro. Chamfort não resistiu a seu próprio livro “Pensamentos, Máximas e Anedotas” e se suicidou em 1795 para não ver publicado que “neste mundo temos três espécies de amigos: aqueles que nos amam, os que não se preocupam conosco e os que nos odeiam”. Para rebater, somente a ironia irlandesa de Oscar Wilde, “ver com agrado os êxitos de amigos exige uma natureza muito delicada”.
O Natal que não sai da cabeça é o do garoto que ganhou uma bicicleta niquelada, iluminada e colorida, tanto que lhe pediram emprestada. Os amigos de sempre. Abuso que vai e mau uso que vem, resmungos dão o troco, esquentam o ânimo, alterna-se a bandeira branca pela quadriculada que dá partida à vingança servida em baixela de prata. À altura da ceia servida com nozes e castanhas no quengo do infeliz proprietário da bicicleta, levando-o a ralar-se todo de encontro ao muro enrugado com chapiscos pontiagudos. Caso a amizade sofra com isso é porque não existe, foi o que ouviu de uma dessas tias de plantão, e caiu em prantos num choro convulso.
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