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APRENDENDO A OLHAR NO FUNDO DA ALMA

Morélia sempre viveu voltada para o estrangeiro. 
Foi secretária de um francês, Monsieur Trousseau, numa multinacional francesa e com ele aprendeu francês, inglês e outras línguas. Mas não aceitou sua proposta de casamento por não considerá-lo à altura de sua formosura e do aparato de que se julgava merecedora, por vir a enfeitar sua descendência com o que mais faltava a ele: beleza.
Preferiu um norueguês loiro, de olhos azuis, com um negócio de vento em popa e com quem casou, tendo duas filhas maravilhosas. Contudo, o bem-sucedido não saiu como bem lhe pareceu e não foi nada do que ela esperava: faliu, caiu doente e nem cedo nem tarde morreu para, na passagem do tempo, Morélia colher os frutos que semeou. 
Obrigada a voltar para o batente e trabalhar como tradutora juramentada para sustentar a educação das filhas, foi quando se apercebeu, já entrada na idade, do quanto deixou passar uma oportunidade rara e perdeu uma chance em mil de ser feliz. Por conta da estúpida vaidade.
Imediatamente saiu em busca de Monsieur Trousseau e o descobriu no sul da França, cercado de bisnetos, netos, genros e noras. Ele a recebeu fidalgamente, ao lado de sua distinta esposa. Não estava mais em idade, ou melhor, em condições para refazer a vida ou sequer recorrer a uma aventura. Hoje eles se telefonam por ocasião do Natal e da Páscoa.
Aos 83 anos, Morélia mantém-se íntegra, lúcida, com uma saúde sem sobressaltos, mas ainda se arrepende do que não fez. Só há uma saída: livrar-se do inconformismo e do ressentimento que costumamos atribuir à injustiça regendo as coisas da vida para justificar nossos atos, simples desacertos que não raro descambam para a insensatez. 
Tempo de sobra Morélia ainda tem para pacificar e preparar o seu espírito, a fim de, na próxima encarnação, encontrar-se com Monsieur Trousseau e, dessa vez, não deixá-lo escapar por entre os dedos. Não demora tanto quanto nós pensamos. O carma somente se arrasta no tempo se teimarmos em não arredar os pés da vaidade e não enxergar o belo no feio, aprendendo a olhar no fundo da alma.
Antonio Carlos Gaio:
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