Aos 5 anos, um menino sinalizou à mãe no supermercado que queria uma escova de dentes que não se identificasse com seu gênero de nascimento. Sua mãe fingiu que não ouviu e mandou-o ir atrás de um modelo para menino. Ele insistiu, sua mãe cedeu. Já transformada em ela, voltou do mercado toda animada, surpreendendo por ele ser muito quieto até então. No dia seguinte, anunciou: “Mãe, eu sou sua amiga”. Ao que a mãe corrigiu o gênero, ela acrescentou: “Sou sua amiga porque sou menina. E para de cortar o meu cabelo!”. A mãe mal sabia o que era ser transsexual e a confrontou com seu irmão, de nada adiantando. Procurou uma psicóloga, acentuando: “Tem outra criança dentro dela”. A escola na zona rural de Paraty acusou algo de errado com a criança, ali começava uma batalha na vida da família pela aceitação da menina.
Três anos depois, uma decisão inédita da Justiça do Rio de Janeiro garantiu seu direito de mudar nome e gênero no registro de nascimento. Graças à autorização ao uso do banheiro feminino e a ser chamada pelo nome que escolheu, o que repercutiu no aprendizado de ler e escrever. Dançar, cantar, virou outra criança quando os cabelos ficaram longos, na altura da cintura, sonhando em encarnar a princesa Rapunzel.
Embora seja necessário cautela, já havia um diagnóstico de incongruência de gênero na infância, resultado dos constrangimentos por que ela passava, como escrever seu nome feminino e a professora mandar apagar ou os funcionários da escola não darem a menor pelota para a sua situação. Urgia uma identidade com a qual se identificasse para superar incompatibilidades como a do seu pai. Jamais violento, levou tempo insistindo em chamá-la pelo nome masculino, não aceitando comprar, a seu pedido, um vestido que girasse porque não entendia alguém não se afinar com o gênero que nasceu. Julgava que um dia sua filha não mais continuaria a brincar e voltaria a corresponder à expectativa de todos. Em vão, já que a psicóloga esclareceu a questão e sua filha não precisou mais corrigi-lo quando a chamava por seu nome de batismo.
Histórico o dia em que ela pediu para a mãe rasgar e queimar sua certidão antiga em virtude do menino dentro dela já haver morrido.
O acompanhamento psicológico até a vida adulta para ratificar a incongruência de gênero. O próximo passo é o bloqueio hormonal no início da puberdade (entre a infância e a adolescência), com indicação médica e autorização dos pais, o que evita o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários com os quais o pré-adolescente não se identifica, como barba ou crescimento das mamas, conforme o gênero. Caso mude de ideia, o bloqueio hormonal é suspenso e a biologia retorna ao percurso de acordo com a sexualidade com que nasceu.
O segundo passo é a hormonoterapia cruzada (tratamento por hormônios), depois de feito o acompanhamento médico até os 16 anos. O terceiro passo é a cirurgia de mudança de sexo após os 18 anos, se for do interesse do já adulto.
Ainda há muito por descobrir na criança que nutre um encantamento pelo gênero oposto, mas que pode não se desenvolver como transsexual, daquela que luta por incorporar um gênero diferente do nascimento. Essa que logo cedo identifica a questão, cresce muito mais feliz.
Embora persista doses cavalares de preconceito relacionado às pessoas trans, o quadro está melhorando sob o ponto de vista dos pais que se dirigiam ao ambulatório para matar no nascedouro e reverter a opção sexual de seus filhos na marra – ou seja, a cura gay. Quando não existe cura para o que não é uma doença. Hoje, uma considerável parte busca orientação de como lidar com esse comportamento, o que é um bom sinal. Falta, isso sim, reverter a bestialidade humana, incansável em derramar sangue nas frequentes tentativas de eliminar o transexualismo, a externar uma extrema dificuldade com quem lhe é diverso, estranho, fora de seus padrões que considera normais e adequados para a sociedade. Não aceitando o transexual no seu meio por afrontá-lo com sua aparência. E se for atração, só matando o mal pela raiz.