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BLUES DA SINCERIDADE

Dissecar suas reações com uma honestidade de partir o coração pode ser perigoso e levá-lo a se sentir deslocado no mundo em que paira. Equivale à sinceridade, só que vai um pouco mais além. Envolve um apaixonado compromisso interior em que exubera fantasias na exímia aptidão em usar energeticamente a vontade para obter o prazer e a felicidade.
Do que resulta o sentimento de potência. E a perda de amigos verdadeiros, que de verdade não eram nem amigos até que surgiu uma oportunidade para atestar, filosofia barata de um gerente de banco que o convoca para cobrir a dívida de um amigo da onça do qual foi avalista. Negam a realidade para si mesmos por não suportarem a convicção vazando euforia, em contraste com o risco colossal que ameaça nossa existência.
Não há como se acautelar quanto à forma de viver escolhida. Ai de quem só se apercebe dessa realidade de cutelo no correr de anos, castigado por uma consciência que fustiga na constância, a tortura que angustia. As verdades de antigamente se apoiavam numa moral de tradição, respeitar os mais velhos, as de hoje temem ser atingidas por seus próprios golpes, pautadas na dúvida de seus ancestrais e de suas lendas, dependendo de como são contadas.
Se a única maneira de escapar do abismo é querer ir fundo e de peito aberto, deduz-se que falta certeza e significado aos que negam a realidade e se derramam em insinceridades – a cada tropeço, uma falha no caráter. Tal percepção freqüentemente leva ao desespero. Esse desespero pode ser reprimido ou ignorado, ou mesmo, completamente esquecido com uma existência burguesa respeitável.
Cavalo paraguaio está associado à falsificação, o pangaré que não corre e ao uísque que é puro iodo. Como o enganoso campeia, com que direito o desespero arrebata o significado de sua vida, se a perversão pode tranqüilizá-lo? A exemplo do herói trágico que encontra consolo em um grau de consciência fadado a becos sem saída, de um fatalismo sedutor que proporciona paz na penumbra da hipocrisia. Ao aceitar que estamos fadados, rejeitamos a responsabilidade por nossas próprias vidas, somos meros joguetes nas mãos do destino. O que acontece não é culpa nossa.
Propagandeiam por todos os cantos viver a todo transe em todos os poros, a senhora liberdade, pura e casta. Retribuímos com pavor e angústia. Almejar o pináculo da ambição e receber um não rotundo no meio das fuças, atrai o desespero, por ser inumano suportar a rejeição, um vazio interior acompanhado de uma vontade inconsciente de morrer.
A única escapatória é esquecer, quanto maior for o número de transformações que sua vida pode sofrer, tanto mais será capaz de lembrar quão divina sua vida se torna, porquanto o “eu verdadeiro” ser o verdadeiro crente. Algo perfeitamente exeqüível de o indivíduo entrar em contato e se familiarizar, mas como, se um absurdo a tal da fé, irracional a esperança, para além do alcance de qualquer argumento razoável. Mas que treme diante da própria imaginação que a tudo cria, transforma, zomba e tagarela para conferir humanidade a parasitas, vampiros e agnósticos, através de uma teatralidade cômica e burlesca.
Os que negam a realidade da arte na vida temem se enfiar em outra arapuca. Quanto mais a sinceridade obriga a revelar a face oculta de mitos e lendas, das profundezas para a luz do dia, a tendência é de não encontrar algo agradável de se ver e, portanto, permanecermos fiéis ao que nos foi ensinado. Fazendo brotar as orelhas de burro e o nariz do Pinóquio, separando os dentes para conferir um ar de imbecil, atarraxando uns óculos escuros para disfarçar olheiras de pauleiras que levamos no lombo… e não aprendemos.
Ligados no lance, Cazuza e Frejat já haviam homenageado os macacos de realejo: “Agora eu vou cantar pros miseráveis / Que vagam pelo mundo, derrotados / Dessas sementes do mal, plantadas / Que já nascem com caras de abortadas / Pra pessoas de alma bem pequena / Remoendo pequenos problemas / Querendo sempre aquilo que não têm / Pra quem vê a luz, mas não ilumina suas mini-certezas / Vive contando dinheiro e não muda quando é lua cheia / Pra quem não sabe amar / Fica esperando alguém que caiba no seu sonho / Como varizes que vão aumentando / Como insetos em volta da lâmpada / Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Pra essa gente careta e covarde / Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Lhes dê grandeza e um pouco de coragem / Quero cantar só para as pessoas fracas / Que tão no mundo e perderam a viagem / Somos iguais em desgraça / Vamos cantar o blues da piedade”.
Quem canta os males espanta, o blues da sinceridade.

Antonio Carlos Gaio:
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