A Bolsa-Ditadura (cognominação de Elio Gaspari) foi instituída para compensar quem foi mandado embora de seus empregos ou impedidos de exercer sua profissão pela ditadura militar, quando não perseguido, preso, torturado, estuprado, assassinado, desaparecido, enterrado em local desconhecido de sua família, ou banido do país. Os mais inteligentes ou espertos souberam fazer humor e até faturaram com o estúpido regime, quando não enriqueceram e se tornaram famosos.
A vitimologia, palavra cunhada pelo jurista israelense Benjamim Mendelsohn em 1956, lança uma luz na reversão dos efeitos psicológicos de bofetadas, “telefones” e choques elétricos, além de ver amigos e seres humanos seviciados à sua frente, com o corpo estropiado e espírito danificado. Transformaram em produção intelectual, artística, tecnológica, quando não uma atuação em prol da sociedade e de comunidades carentes, culminando por calar a boca de seus algozes, que tiveram de meter a viola no saco e se contentar em receber seus soldos, acrescidos de promoções pelos serviços prestados, seguidos da aposentadoria e transmissão de seu status após a morte para esposa e filhas. Como se nada tivesse acontecido.
Garantidos pela anistia, ambos os lados da refrega política não podem se processar mutuamente em nome de arbitrariedades, baixas infligidas e bombas explodidas que deceparam braços e genitálias. Mas a Bolsa-Ditadura existe para que sirva de lição a quem se arvore em práticas que atentem contra a democracia e a liberdade de ir-e-vir no pensamento para exprimir o que o povo ainda não está preparado para ouvir – do ponto de vista do padre-nosso do censor. Ditadura, nunca mais!
E só sendo de valor pecuniário para doer no bolso da Viúva, órfã de ditadores, e ficar indelevelmente gravado no jazigo de ditaduras. Para lembrar aos que usurpam o poder que, no transcurso da História, tem o dia da caça e do caçador, segundo Chico Buarque. A ascensão e queda do Reich de que diabo for.
E anistia, para valer, não pode sair de graça. São reparações de guerra fratricida. Mesmo que seja em prestações mensais até a hora da morte. Somos um país fadado a enterrar e esquecer o passado, não porque sejamos cristãos e perdoemos, e sim pela tendência ao arreglo e conciliação para não se apurar a verdade dos fatos e os prejuízos serem compartilhados. Ao menos, os carrascos não cospem mais fogo e o retorno à vida civil nos permitiu voltar ao ponto de origem e a seu lugar-comum: a injustiça e o destempero.
Indenizações descompassadas com a realidade brasileira foram pagas a jornalistas bem-sucedidos. O presidente Lula não abriu mão de sua pensão por ter passado 21 dias na prisão. Em contraste com facínoras que invadiram redações de jornais depois do golpe de 1964 e disseram o que publicar enquanto os donos faziam continência. No lugar de muitos que agora protestam contra fixar preço num ideal e tirar proveito da ideologia, e terem aplaudido entusiasticamente a Redentora, vivido em paz nos anos de chumbo e até se beneficiado do regime militar.
Destampou-se a panela de pressão e se pode falar à vontade. A liberdade de imprensa permite comentários ensandecidos e sandices, se nivela por baixo a internet, a censura se foi, e o elogio à virtude dos que não pleitearam a Bolsa-Ditadura, por pensar primeiro no Brasil, mereceu a costumeira falta de reconhecimento.