Em época de politicamente correto, não se pode falar mal dos negros, porque os brancos abusaram. Não se pode falar mal dos judeus, porque os alemães nazistas abusaram. Não se pode falar mal dos deficientes físicos, porque a sociedade descobriu que, não faz pouco tempo, podia andar sobre as duas patas e iniciou a reparar calçadas, escadas e banheiros públicos. E o que dizer do cacoeteiro?
Piscar os olhos sem parar, enrolar o cabelo no dedo, andar em círculos ao falar no telefone, cuspir, cafungar, pigarrear, assoar em seco, fazer caretas ou simplesmente roer unhas são alguns dos gestos incontroláveis para quem tem cacoete. Quem não se lembra do Sinhozinho Malta, que sempre balangava as pulseiras do seu braço quando estava nervoso? Na vida real, as pessoas se alimentam de um arsenal de manias e, o que é pior, arrumam tique nervoso sem sentir. Como uma aborrecente que rangia os dentes até a mandíbula sair do lugar, tendo que ir ao médico para encaixar de novo. Daí arrumou outro cacoete, cada vez que lembrava da dor fazia uma careta horrível.
Outro cacoete revelador é quando você é tentado a mentir. Para evitar o suor respingando na testa e o indefectível lenço, segura-se o pescoço para que a cabeça não role e ajeita-se incansavelmente os óculos de grau. E dá-lhe de desenvolver a nova estratégia de mentira, chamada pluma no vento, que é emitir uma opinião, sem argumentar, e logo depois voltar atrás, sem a menor cerimônia, de cara limpa. Como o poderoso Bill Gates, que surgiu com uma concepção angelical de empresa fundo de quintal para depois se transformar no monstro monopolizador do mercado de informática, criando incompatibilidade com o seu Windows 95 e falências para outras firmas.
O cacoete é uma forma de aliviar as tensões decorrentes da irreversibilidade da globalização. A salada de frutas ideológica, em que se misturam neoliberal, social-liberal, social-democrata, centro-esquerda, comunista e neo-social, não consegue impedir a conseqüência mais perversa da modernização: o desemprego. No lugar de pêra, uva ou maçã, ansiedade, medo ou insegurança?
Vivemos uma época de intensa promiscuidade entre os poderes, independência que não se afirma, dependência que se agrava, o nosso dinheiro financia privatizações, o tráfico de influências inspirado no tráfico de drogas se confunde com lobby, anistia-se multas no trânsito para aplacar a consciência culpada dos loucos no volante, multas por crimes eleitorais são anistiadas pelos próprios deputados e senadores que fizeram a lei. Uma mania de querer morar em palacete pois que a casa não comporta o tamanho do ego de quem encara política como negócio lucrativo não sujeito a balanço e pagamento de impostos, inspirando o rap que estimula a violência: “Agora é hora de eu ganhar dinheiro”.
Valoriza-se a figura do empresário, a necessidade de criar inúmeras empresas para dar vazão aos múltiplos negócios que surgem, fala-se ao telefone para cobrar a fatura de anos e anos de sacerdócio na política e assegura-se a renovação do voto no homem certo no lugar certo. E não saímos do círculo vicioso, do jogo de ronda, do lugar-comum: é dando que se recebe, uma mão lava a outra, você coça as minhas costas e eu coço as suas.
O ideal é que as pessoas não levem a sério as brincadeiras dos amigos por conta do cacoete. O politicamente correto graduou agentes chatos e atentos a qualquer deslize para expô-lo nu. Dia virá em que as peças desse quebra-cabeça se encaixarão e o tique nervoso, sumiu.