Desde que os portugueses adentraram a Baía da Guanabara e puseram os pés em manguezais e praias, a discussão em torno da melhor forma de se aproximar dos estranhos, sem parecerem alienígenas, causa rebuliço. O espelho como elemento de escambo convinha à bandeira da exploração que iria se iniciar. Cunhava-se, a partir daí, o caráter miscigenatório na fusão do explorador e explorado, no interesse legítimo da Coroa. Que viria a dar o tom na forma desavergonhada com que os cariocas se lançam ao seu semelhante, imersos na dúvida se bolinam ou se deixam bolinar, se espetam ou se deixam garfar, se acomodam o buzanfã na melhor poltrona ou se ficam cheio de dedos, se deixam o patrão pensar que tá tudo sob controle ou se entregam a rapadura sem o menor critério.
Esse conjunto de irracionalidades surrealistas ao som de atabaques africanos que solenizavam o sangramento de galinhas pretas em atenção a um desejo ou esperança de dias melhores, virou cultura. Que nem assim impediu o buliço de cérebros estreitos no desfile dessa mentalidade nas passarelas do Rio de Janeiro, desaguando comentários desairosos a respeito dos cariocas, sobre a sua forma de se aproximar, de fazer amizade.
Principalmente oriundo de paulistas, que reclamam do carioca convidar sem sequer dar o endereço. “Passa lá em casa! Não deixa de ir amanhã, tá legal?”. Ou então, dá o endereço e depois finge até que não conhece quando se cruzam na rua. Alcunham os cariocas de superficiais porque são capazes de abraçar e serem afetivos, para depois esfriarem sem qualquer motivo. Em suma, não aprofundam a amizade, giram em torno de ambientes festivos, sempre no quintal da galhofa, não foi de graça que o Grupo Casseta e Planeta popularizou a expressão “Fala sério”.
Os cariocas contra-atacam com “desinteresse mermo”, já que não rolou afinidade. Nada existira que justificasse uma continuidade. Ou a gente tem que se encontrar por obrigação? Ou só porque se conheceram no transcurso de uma noitada ou excursão, torna-se obrigatório receber um na casa do outro?
O descaso é aparente e serve para dissimular o engano de pensar que poderia ser uma amizade. A superficialidade é uma forma de dizer para o outro que não sinto vontade de vê-lo de novo, sem magoá-lo. E por que não rolou? Basicamente, porque as cabeças não eram tão afins, como se julgou de início. Supunha-se que ambos poderiam trilhar o mesmo caminho e isso não aconteceu. Como trocar energia, meu irmão?
Os cariocas põem as cartas na mesa e se comparam a maridos e mulheres, sempre em estado latente de tensão. Predomina um estado de inquietação e insegurança em busca da paz, que jamais será encontrada, face à obstinação na luta para manter o amor nas condições normais de temperatura e pressão. Atormenta-se com a idéia de pensar que escolheu o parceiro errado, e se mudar, corre o risco de não mudar nem um pouco. Repercutindo e influenciando os padrões de amizade, de que adianta trocar latitude e longitude se não irão atingir o objetivo, ô parceiro?
Quiséramos ser iluminados para vislumbrar quem adentra em nossos lares, se mete nas nossas vidas e penetra no rol de amigos, a fim de não cometermos equívocos tão grosseiros. Laços de ternura se desfazem entre namorados que viraram marido e mulher por uma existência, entre companheiros que dividiram o mesmo teto talagada de anos, entre familiares que negaram a ascendência do sangue, entre amigos inseparáveis a ponto de outros se confundirem e trocarem os nomes.
João do Rio, na Gazeta de Notícias de 29 de setembro de 1907, disse que o carioca é bem o homem das manias, o bicho insaciável, toma um prazer ou um divertimento, exagera-o, esgota, aborrece e abandona-o. Não há nada que resista a cinco anos de vida, o carioca é variável como o tempo. Depois do bicho, maxixe, meetings de oposição e propaganda, agora a moda são os cinematógrafos, a nova epidemia que ultrapassou a febre amarela, a peste bubônica e a varíola.
O humor dos cariocas possui um sabor diferente dos judeus ashkenazi, que no idioma iídiche, enriquecido por expressões singulares de vilarejos na Europa Oriental, assim pragueja: “que caiam todos os dentes de tua boca, menos um, e que este doa noite e dia sem parar”.
Diria um lusitano a castigar no palavreado: o que tem o cu a ver com as calças? Ó pá, segundo o exposto acima, ou do lado, o carioca não é como o francês, filosofa, filosofa… e se enrola. Mistura afinidade, papo-cabeça, amor, afeto, traição e receia mudar de pouso. Quem quer um amigo assim?
Espelho meu, responda. Por entre o reflexo do sol no espelho do índio, Machado de Assis foi às origens em sua peculiar ironia castiça e resgatou: “Felizes os cães que pelo faro descobrem os amigos”.
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