Essa é a história de como se constrói uma Rússia. De com quantos paus se faz uma canoa. Atrás de uma paliçada se constrói uma arena, atrás de pesadas toras de cedro se erigiu a cidade de Moscou em 1147, cujas muralhas, de tanto os invasores tocarem fogo na madeira, acabaram por se transformar numa verdadeira muralha que resistiu ao brandir das espadas e das estocadas do fogo inimigo. Numa verdadeira fortaleza, o significado de Kremlin, que abriga no seu interior inúmeras catedrais, dentre as quais Dormição, Anunciação, São Miguel Arcanjo e o Campanário de Ivan, o Grande. Além da Câmara Facetada (1491) e do salão de coroação e banquete de núpcias, o Palácio do Kremlin (1849), sede de gala dos czares, e o Palácio do Patriarca, sede do chefe da Igreja Ortodoxa Russa.
Afora e à frente do Kremlin, a Praça Vermelha, que no russo krasnaya significa também belo. Famosa pelo desfile de armamentos comemorativo do Dia do Trabalhador e da Revolução Russa, em que sobressaíam os mísseis. Não era à toa que se associava o vermelho do sangue ao comunismo; e o espírito do confronto, o sangue derramado e o sangue que corre nas veias, à vitalidade.
A história da Rússia se inicia nos bárbaros. Nos selvagens, silvícolas, autóctones, nativos ou fetichistas – o que quer que sejam chamados -, na evolução de uma personalidade independente e soberana, que não depende senão de si mesma. Na evolução de uma lenda que se expressa por sua arquitetura, representada na águia bicéfala, uma cabeça para a Europa e outra para a Ásia. Símbolo posteriormente reproduzido pelos figadais inimigos americanos para espelhar a agudeza de seu raciocínio e a visão de logo passar à ação e não gastar tempo com elucubrações.
Uma história de opressão, por soberanos provenientes de seu próprio e futuro povo, dos quais alguns se incluem entre os mais cruéis que o mundo já conheceu, o que explica por que o povo russo é tão arraigado à sua terra, desconfiado dos estrangeiros e submissos a um poder autoritário. “A resistência da Rússia se tornou notória”, disse o poeta Evtouchenko, “posteriormente ficou insuportável!”.
O nome de russo foi sendo consolidado ao longo do tempo, associado à imagem de seu animal-símbolo: o urso. Correlacionado ao homem másculo, rude e cruel, quando a situação exigia.
Privada de fronteiras naturais, a Rússia sofreu diversas invasões, uma após a outra. Através de seu leste, hunos e tártaros. A seu oeste, vikings, godos e teutônicos. Os kazãs, povo de mercadores estabelecidos na região do Baixo Volga, comerciavam com os eslavos que viviam na região das florestas onde hoje se localizam Kiev, Novgorod e Moscou, próximos da rota comercial cujo acesso conduzia a mares navegáveis na extremidade báltica. Aparentados aos eslavos da Europa Central, estes eslavos do leste sucederam aos outros invasores destituídos do caráter civilizatório, tornando os russos cada vez mais resistentes, como ficou de sua fama. E semear as origens históricas do estado russo, que corresponderia à extensão de terra entre os mares Báltico (golfo da Finlândia) e Negro, cortada pelos rios Volkov e Dnieper, por meio dos quais comerciantes escandinavos penetravam em terras eslavas para alcançar Bizâncio (antigo império romano do Oriente, centrado na sua capital Constantinopla, hoje Istambul). Quando, ocasionalmente, combatiam o povo local, valendo-se dos guerreiros vikings. Ao longo de seu percurso, fundaram os burgos fortificados de Novgorod e Kiev. Com o primeiro, nasce o Estado russo em 862. Transferido depois para Kiev, em 882.
Em 980, Kiev é governada por Vladimir, primeiro eslavo de uma longa série de autocratas que predominaram na Rússia. Nessa época, a maioria dos soberanos da Europa, Oriente Próximo e África do Norte tinha abraçado uma das grandes religiões monoteístas. A Europa e Bizâncio eram governadas por príncipes cristãos, o mundo árabe por mulçumanos. Ao sul de Kiev ficava o Estado então independente dos Kazãs, no qual os chefes tinham adotado o judaísmo como religião oficial.
Vladimir viu que poderia tirar partido com uma religião oficial como fator de unidade, integração e controle de seu povo, decidindo impor a seus súditos uma religião para substituir suas crenças. Vladimir enviou emissários para se informar sobre o islamismo, o judaísmo e o cristianismo e efetuar sua escolha. De pronto, o islamismo foi rejeitado por condenar o álcool – o grande prazer dos russos. No judaísmo não fizeram fé pelo fato de os hebreus serem um povo disperso, espalhado por diversos territórios. Só lhes restou o cristianismo sob duas formas: romana e oriental. Os agentes de Vladimir acharam que faltava brilho ao cristianismo romano. Ficaram ofuscados pela pompa da Igreja Ortodoxa, em plena fase de rompimento com o Papa, sob a influência dos bizantinos em Constantinópolis.
Foi a primeira e única vez que se teve notícia de um estado-nação realizar uma licitação para proceder à escolha de uma religião oficial.
Vladimir batizou-se segundo o rito ortodoxo e obrigou seus súditos a seguirem o exemplo. Esta escolha teve efeitos duradouros que acabaram por isolar o então reino de Vladimir do resto da Europa. Suscitou uma desconfiança tenaz às ideias vindas do oeste, origem de uma trágica inimizade entre russos e seus vizinhos católicos, principalmente os poloneses. O golpe audacioso de Vladimir assegurou ao principado de Kiev uma certa unidade que, após sua morte, chegou ao apogeu com Iaroslav, que protegeu as letras e as artes construindo catedrais e se aliando a numerosos soberanos estrangeiros. No entanto, a sua morte em 1054 anuncia o declínio da Rússia Kieviana que, devido às infindáveis guerras internas e ao enfraquecimento do poder central, dividiu-se em vários principados.
No século XI, a arte moscovita começa a dar o ar de sua graça através de ícones – imagens religiosas pintadas em painéis de madeira – produzidos por artistas anônimos mantidos pela Igreja e que retratavam o reino de Cristo. Seu caráter sacro espalhou-se por lares quando passou a se acreditar que contivessem poderes miraculosos de curar enfermos e repelir invasores. Sem a ilusão de profundidade da pintura renascentista, tampouco tinham a pretensão de serem originais. Veneradas relíquias que testemunharam a profunda fé cristã da Velha Rússia.
Superstição à parte, quando uma casa de madeira em Suzdal ficava pronta no século XII, faziam entrar primeiro o gato, o decifrador da sorte por gozar de sete vidas. Se ele desdenhava e não ousava pôr as patinhas adentro, desmontavam a casa toda, pois que só os gatos farejam maus espíritos.
Constantemente invadida por nômades, a Rússia sucumbe aos tártaros – um dos braços dos mongóis – que, no século XIII, conquistaram uma grande parte da Europa e da Ásia. No principado de Vladimir, o reino inteiro se refugia no interior da Igreja de Assunção de Nossa Senhora e é queimado. Os russos entenderam o recado de Deus para abaixarem a cabeça, fortalecerem o espírito e aprenderem a costurar alianças.
Em 1240, os tártaros se apoderam das terras eslavas do rio Neva ao Mar Negro, ao passo que Alexandre Nevsky, com 19 anos, salva a Rússia de uma invasão inimiga em larga escala, pelo norte. Bate os cruzados suecos e atrai os cavaleiros teutônicos para uma batalha sobre a superfície gelada do lago Chudskoye, esmagando seus lendários guerreiros montados que, protegidos por armaduras pesadas, não conseguiam manter-se de pé.
Alexandre Nevsky entrou para a História como o maior defensor da Rússia, por sua luta pela unificação do território que emplacou a grande nação russa no mapa-múndi. Apesar de tê-la tornado vassala dos tártaros. A intenção de Alexandre era impedir que o enorme exército tártaro, como de hábito, massacrasse e arruinasse, fizesse da Rússia terra arrasada – sabia que não se importavam com a religião ou cultura russas. Forçou os cidadãos de Novgorod a pagar tributo e deteve uma ocupação que usurparia mais território, com o apoio da Igreja Ortodoxa Russa. Graças à amizade com o Grande Khan (líder do império mongol), Alexandre Nevsky foi instituído como Grão-Príncipe de Vladimir, o comandante em chefe russo – o que permitiu eximir seus compatriotas de marcharem ao lado dos mongóis em suas guerras de conquista.
De 1328 a 1340, Ivan I, o Grão-Príncipe de Moscou, amplia seu território e se torna o vassalo preferido dos tártaros, que governaram o jovem Estado russo por mais de dois séculos, reduzido a alguns principados pagando tributo aos senhores tártaros.
Kiev, no meio da Ucrânia tártara, não encontrou nunca mais sua supremacia política. Muitos ucranianos de hoje reivindicam a honra de terem sido os verdadeiros fundadores da Rússia, embora não se considerem russos e desdenhem de seus vizinhos eslavos do norte, originalmente habitantes da Moscóvia, principado cuja capital Moscou era um burgo como qualquer outro. No entanto, os príncipes moscovitas se aproveitaram habilmente da coleta de impostos para reforçar sua posição, desviando parte dessas somas para fortalecer sua soberania.
O poder espiritual e temporal de Moscóvia se solidifica quando, por um golpe de sorte, o patriarca da Igreja Russa morre durante uma visita a Moscou e os príncipes moscovitas persuadem seu sucessor a transferir a sede da igreja para lá, suplantando Kiev como capital religiosa da Rússia.
Assim, tornaram-se bastante fortes para confrontar os tártaros, ainda mais que a coesão alcançada através da conversão ao cristianismo se consolidava e o alfabeto cirílico criado pelos irmãos missionários Cirilo e Metódio no século IX facilitava, ao ter adaptado a língua russa à escrita grega.
Os mongóis varreram e destruíram mais territórios do que qualquer outro povo na face da Terra. Semelhante às da Mongólia, amavam as planícies da Rússia, onde havia também florestas e, atrás de cada árvore, um inimigo russo pronto para matá-lo. Por isso, seu domínio não se solidificou – não lhes aprazia viverem encerrados em fortalezas ou castelos. Gostoso era vencer os inimigos, persegui-los, tomar suas terras, ver suas famílias em lágrimas, montar seus cavalos, possuir suas filhas e esposas. Seu domínio era entendido pela matança, fogo e saque, em troca do tributo.
Por entre as labaredas da destruição, surgiu Andrei Rublev, o maior iconógrafo russo de todos os tempos, que proporcionou mais cores e luzes aos ícones, numa tonalidade brilhante que deu uma nova feição à influência bizantina. Jesus deixa de ser ameaçador e Nossa Senhora, angustiada. Andrei Tarkovski, famoso diretor do cinema russo, cuja temática recorrente é a espiritualidade, levantou a questão de o artista começar a interferir na realidade de seu tempo e não apenas retratá-la, quando filmou Andrei Rublev.
Por entre as línguas de fogo que vertiam cinzas e destroços, divisou um temperamento impulsivo que começava a levantar as paredes de uma casa que iria abrigar uma nova nação. O clarão das chamas preanunciava um Deus no Céu e outro aqui na Terra, disposto a não se subordinar ao sublime que o sagrado coração exige, falecer o bizantino e florescer o russo, numa missão terrível em somar pedaço a pedaço na busca pela identidade de um povo que não comportava recuos diante de enfrentamentos inevitáveis, quando a sorte está lançada.