Por que um bandido precisa brutalizar suas vítimas? Trespassar o corpo com espada de samurai, retalhar com moto-serra, obrigar a vítima a comer a própria orelha ou fezes, aplicar choques em filha de comparsa traidor. É preciso impor todo o tipo de maus-tratos ao corpo de traidores. Cortar braços e pés, devagarzinho, pedaço por pedaço, apenas por ser amante de uma do harém do traficante, cuja alfabetização se baseou nos sultões das histórias de mil e uma noites. Daí a decepar línguas e arrancar o globo ocular, positivamente não, são xenófobos, que não respeitam catacumbas nem jardins da saudade, preferindo a queimação antevendo o inferno que lhes espera.
O bandido é um invasor, perdeu a noção de raiz em que a miséria era cordial, conciliadora e dócil, se podia subir o morro para se deliciar com o samba de partido-alto, rico e pobre eram parceiros na pelada. Ai de quem entrar duro no adversário hoje!
Com a falência do financiamento da casa própria, as favelas incharam e se tornaram refúgio da bandidagem onde reina o império do terror na disputa de pontos de venda de drogas, na medida que começou a fazer a cabeça do bacana. Iniciou-se a demarcação de territórios no vazio do poder, não subordinados a qualquer autoridade exterior, com bandeiras e símbolos, os Estados paralelos. A população se divide entre baixar a cabeça ou adotar seus ícones e cultura. Área nobre as bocas-de-fumo onde o viciado tem de apresentar documentos e ser submetido a revista antes de comprar. Matadores trocam idéias sobre chacinas nas mesas do bar. O pedágio é fato consumado para impedir a entrada de estranhos e manter à distância a polícia. O poder público não consegue acompanhar o ritmo de seus negócios, ágil por não temer a morte. Armados até os dentes, o seu riso de escárnio reflete o nível de celebridade a que atingiram e o papel de presas fáceis a que nos relegaram. Que mal há em se conviver com uma polícia ofendida e humilhada se a violência não encolhe e não se seduz diante de projetos de urbanização, saneamento e lazer para os favelados? Se a construção de penitenciárias equivale ao sistema de co-gestão, vincular a selvageria à má distribuição de renda ficou tão antigo quanto comunista sentir saudades de Stálin.
A exemplo da Colômbia, os profissionais do crime encaminham-se para o reconhecimento de que são mesmo os governantes das áreas conflagradas, com troca de embaixadores, preferencialmente os presidentes da Associação de Moradores, baseados em que uma certa legitimidade da dominação do tráfico é preferível à tirania mais aberta e amedrontadora do poder de polícia, já que a lei só se faz presente com repressão e brutalidade em pocilgas. Quando a transgressão se vulgariza, a punição perde a energia de reprimir e de costurar os vínculos sociais rompidos. A próxima etapa será o asfalto, tendo a miséria como pano de fundo e esconderijo.
O chefe do tráfico já exerce os papéis de polícia, promotor, juiz e carrasco no combate ao crime mais hediondo, o de não pagar a dívida de drogas. Também coíbem roubos e estupros na favela, o que não os impede de desvirginar a adolescente mais bonita que pinta nas paradas, insuflados pela banalização do sexo na mídia ou na publicidade a tutelar o nosso imaginário. O alistamento para o exército do tráfico explora o caráter de desdém com que a juventude encara a vida e alicia o sangue bom, afinal rola dinheiro grosso cuja face da moeda é a droga. Ninguém vira bandido da noite para o dia, o afunilamento natural dentre os mais miseráveis e membros de famílias desorganizadas, analfabetos ou semi, acaba por sugar os melhores. Nem da diversão nas favelas descuram, o baile funk atrai uma nova clientela, uma autêntica bola de neve.
No curso das eleições, as elites criaram um baita problema para si ao se obrigarem a blindar suas vidas e cercarem-se de seguranças, isolados nos condomínios e shoppings centers, ao sabotaram a seu bel prazer a evolução da cidadania, os direitos e acessos iguais para todos. As elites se emburreceram com a perda da formação humanística legada por seus avós, trocada pela tecnocracia do Primeiro Mundo cujo lema é não compartilhar, é não abrir mão de privilégios.
Do pau-brasil às drogas, a Cidade Maravilhosa sempre foi um antro de velhacarias, sob a batuta do Brasil Colônia, Império, República Velha, ao sabor de donatários de capitanias hereditárias, senhores de engenho, donos das minas gerais, vice-reis, autoritarismo, até que Juscelino Kubitschek tirou o peso de suas costas e dividiu-o com Brasília. Contudo, o Rio está perdendo a guerra para o crime organizado, o atentado à Prefeitura com mais de 200 disparos de fuzis de uso exclusivo das Forças Armadas, destruindo 55 vidraças de 30 salas dos 7 andares, reproduz os piores momentos de judeus e palestinos, intimidando o carioca a dar os seus próximos passos na corda bamba. Nunca levamos fé na máxima que prevenir é melhor do que remediar.
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