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DOGVILLE

Somos casados com amigos, família, colegas e vizinhos, enfim, com uma convenção não posta em discussão que pontua nossa vida. Quando conseguem nos encaixar na mira de seu entendimento, começam a gostar de nós conforme a imagem comprada, mesmo não estando de acordo com alguns aspectos de nossa personalidade. Se necessitamos compartilhar o precioso tempo, reconforta-nos saber o que esperar – gostando ou não – de alguém. Ao menor aceno de mudança, o desassossego se instala. Tentam coagi-lo a permanecer o mesmo. Receiam que você cause transtornos ao trazer a essência das coisas à tona e obter um significado novo. O que lhes daria o direito de se meterem onde não são chamados. Impingindo-nos culpa e ingratidão, com o intuito de impedir que nos livremos de todos os entulhos ao nosso redor – a começar por livros que nunca conseguimos ler.
Como desembarcamos nesse planeta tão despreparados para entendê-lo? Choramos quando não somos alimentados, de relacionamentos em que aprendemos quem somos a partir do modo como agimos para obter as respostas de que necessitamos. Por que esperamos as primeiras rugas e cabelos brancos para correr atrás de pistas sobre o que está acontecendo? Depois de sucessivos adiamentos. Que não funcionam de fato. Se tivermos que desembaraçar esse novelo, a hora é agora: menos estratégia nos relacionamentos e mais olho no olho, para evitar a pior forma de solidão – a acompanhada.
E se descobrirmos no amor sentimentos ocultos e ainda não explorados que não se manifestam no atual contrato? A parte incomodada resiste e se comporta como criança, que bate com os pés ao impor um amor cem por cento devotado. Num ciclo de repetição cuja intenção é perdurar o sonambulismo a que estamos sujeitos ao despertarmos pela manhã.
O tempo é um marco sem precedentes na evolução da vida. O suficiente para distinguir salvação de destruição, ansiedade pelo êxito de fracasso nos empreendimentos, angústia adolescente de velhice solitária. Gastamos demasiado tempo com futricas que alimentam invejas e não nos detemos no prazer. Ocupados mentalmente em projetar onde queremos chegar, não temos tempo de entender a natureza do conflito e fluímos nossa energia para a insatisfação. Tentando controlar a raiva, a campeã das emoções vulgares. O truque para combatê-la é se fingir de morto: ela se exaure frente ao silêncio, odeia não encontrar um adversário à altura. A raiva se frustra se não consegue crivá-lo de culpa.
Somos impulsionados pelo medo em nossas vidas, compelidos pela necessidade de avaliar e prever para sobreviver. O medo se tornou moderador de apetite para lutar ou fugir. Ficamos com medo de ser machucados quando nos aproximamos de novos relacionamentos, como se estivéssemos sendo fisicamente atacados. Nos tornamos tímidos ou demasiadamente agressivos. Faz parecer que sem a sua companhia estaremos sujeitos a desastres inevitáveis, a pretensão do medo em ocupar o lugar do amor.
Para vencer o medo dependemos somente da fé, posto que as crenças nos dão apenas segurança, uma perspectiva de sentido e direção no contexto. A fé não é condicionada pelo pensamento, remove montanhas sem sabermos como. A fé inspira a criatividade, que opera mudanças e o insere na realidade, a crença disputa para abocanhar essa fé. A fé incomoda por ser vista como obsessão, a crença precisa de crentes para erigir a religião. Daí o suicídio causar mal-estar, por minar a fé que vive em nós e ao nosso redor.
As crianças anseiam se antecipar ao regime adulto, não aceitam o legado que lhes está sendo oferecido. Já decidem por elas mesmas o que é certo ou errado ao aclararem seus valores na escola, baseadas na experiência de inúmeros pontos de vista que martelam sua cachola. O ideal democrático se degenerou através dos gurus da manipulação e das pesquisas de opinião. A espiritualidade se multifaceta evidenciando a ruína das certezas religiosas, o ecumenismo é uma questão de sobrevivência, a moral é relativa, o que restou em seu lugar? Apenas a nossa integridade como guia para assumir uma completa responsabilidade com a totalidade de nossa vida.
Caso contrário, viramos Dogville. Bastou a depressão econômica arruinar seus cidadãos, para tirar a máscara de uma moral que persegue e submete a maus-tratos quem está mais por baixo ainda, a ponto de arrancar o pêlo e a pele até alcançar a carne viva. Sob a capa de gente boa e simples, que nada mais almeja do que aceitação como filhos de Deus, a encobrir uma vilania que desgraça a raça humana e faz Hitler dar cambalhotas na sepultura. O extermínio é a solução mais rápida para quem não quer pensar como nós somos e colaborar para manutenção da espécie no atual status.

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Antonio Carlos Gaio
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