Van Gogh foi o maior pintor de todos os tempos. Vendeu um único quadro em vida, conheceu a pobreza absoluta, recusou-se a pintar gente que não trabalha, consagrou a vitória da cor sobre o desenho, passou a navalha em sua orelha e, por fim, a insanidade levou-o ao suicídio. A vida não fez sentido para Van Gogh.
– Mas como, se a pôde expressar com tanta genialidade – de um Deus -, embora importando no seu sacrifício físico e material? Hoje ele se rejubila por ser o precursor do expressionismo ao escapar dos estreitos limites do tempo. Teve que morrer cedo por não saber conciliar a magnitude de sua arte com os desvãos de sua existência.
– Ah, mas se ele não tivesse sido tão injustiçado, quem sabe?
– A vida é recheada de injustiças, seu dom divino não lhe concedeu a graça de saber lidar com os mortais e naufragou, deixando essa magnífica obra. Em compensação, estará sempre em contato conosco recebendo homenagens que poucos fazem jus, provando que não morreu.
– Que besteira é essa de que ele não morreu? Ele está morto e bem enterrado.
– Ah não, bem enterrado é que não está mesmo.
– De que adianta esses eufemismos se ele morreu de verdade?
– Mas como, se ele ainda está vivo? Presente, a exercer influência, em pintores ou não, por suas pinturas ou pelo exemplo das agruras por que passou em sua existência.
– E eu lá quero ser exemplo para alguém e virar mártir?
– Para ti mesmo pelo menos deverias almejar, é o mínimo que se exige, senão tu és uma rolha flutuando no rio a caminho do mar onde te perderás nas profundezas do oceano.
– Ah, tá indo longe demais!
– Ué, mas quando a gente morre não vai longe demais?
– Engraçado, pra vocês a vida só faz sentido se falar da morte!
– Não! Quando se nasce, aprende-se a andar e falar, a pensar, a namorar, a casar, ter filhos, entrar no trem e realizar seus projetos, se separar, voltar a se apaixonar, ter filhos, virar avô, cuidar da saúde, tolerar o pensamento contrário alheio, doar-se e olhar os lírios do campo. Onde está a morte aí contida se a seqüência pertence ao mavioso espetáculo sinfônico da vida? A morte apenas adentra para escurecer e dar um desfecho na obra que devemos construir com desvelo sem perda de tempo. A lerdeza leva à leseira e emaranha os passos seguintes, perde-se a clareza, adquire-se o mal do século – a depressão -, começa-se a arrumar desculpas para o não fazer, cadê o pato tá aqui tá acolá, vê a banda passar, insiste em brincar de joão-teimoso, se considera eterno, enche o peito de ar e morre que nem peru. De véspera. Quando fazemos de nossas vidas uma obra grandiosa, a nossa marca fica para sempre. Jamais seremos esquecidos. A morte deixa de existir como fim de tudo.
– Morte, para mim, tem uma tonalidade inquietante, irá me questionar através de meus olhos que não poderão mentir por mais que tente forjar-me de bom moço. A morte quer o que há de pior em mim, não respostas fugazes, com a cara lavada e a alma exposta. Virar pelo avesso o que me fez rir tanto quanto o que sofri, buscar uma relação entre a metade infância e a metade velhice que deu sumiço na fantasia paralisada no sonho distante. Em que nível eu dispus da realidade como fonte de aprendizagem e me esqueci de não apressar o tempo com minhas carências e anseios legítimos! Para descobrir quem eu sou. Tenho medo de morrer e descobrir quão estéril fui em meus atos.
– Você é como uma jóia valiosa e única, que só poderá ser avaliada por um expert. Andamos pela vida pretendendo que neófitos descubram nosso verdadeiro valor. Ninguém pode fazê-lo sem o seu conhecimento. O que não dá mais é fingir que não vai morrer.