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O AVC E O SEU NÃO DESPERTAR

Curitiba, 23 de maio de 2018.
A morte em quatro meses de meu irmão causada por um AVC que o deixou em coma, e o despertou por pouco tempo para se despedir, pode ser igual a de inúmeros casos no que diz respeito à dor e à tristeza, mas eu, como sua irmã, declaro-me inconformada com alguns aspectos e passagens que a medicina passa ao largo por não se deter numa análise mais pormenorizada da fenomenologia espiritual, ao não conseguir explicá-la e encontrar valor científico, negando-a, peremptoriamente.
A ligação com meu irmão era velada, fortemente caracterizada por uma proteção de um para com o outro, mesmo não expressada através da troca de palavras. Muito mais sentida, jamais relacionada a coisas materiais, não sendo palpável, mas, ao mesmo tempo, muito real. Embora nossa convivência tivesse sido bastante curta, já que meu irmão se casou aos dezenove anos e logo teve dois filhos, formando uma família à qual se dedicou até o final de seus dias. Eu sabia que, se precisasse de seu amparo, eu o teria. Certeza essa que não deixava que me sentisse tão só neste mundo, já que não formei família.
Ele sempre esteve presente não somente na vida de seus filhos, como posteriormente dos três netos. Defendia a neta mais velha, que hoje está com 23 anos e concluindo o curso de Direito, apoiando-a em tudo o que fazia, dizendo para o seu filho (o pai dela) que ela (a neta) agia desta ou daquela forma porque hoje o mundo mudou de perfil, e que ele deveria conversar mais e procurar entender suas reações. Parar de chamar sua atenção ou brigar, trazendo a filha para mais perto dele, e não a afastando.
Nos meses que antecederam o AVC, cheguei a perceber uma tristeza em seu olhar. Perguntei o que estava acontecendo, mas ele me assegurou que corria tudo em paz, e negou a melancolia que se apossou de sua alma. Hoje penso que se aquela tristeza estampada em seu semblante já não seria um prenúncio do que estaria por se realizar.
O AVC que o atacou em janeiro, durante a madrugada, dormindo, sem que sua esposa se apercebesse, foi um choque para a família. Desolador ter que autorizar uma traqueostomia para ele respirar melhor. Diariamente, eu o visitava na UTI, procurando tranquilizá-lo com palavras de conforto para que não se preocupasse com encargos e responsabilidades, pois todos estavam orando e pedindo a Deus que fizesse o que fosse melhor para ele. Gostaríamos que ele voltasse para o seio da família, embora devesse seguir o que pedia seu coração e sua alma. Reconhecia a extrema dificuldade da situação, mas que ele não se apegasse aos problemas porquanto seriam resolvidos de uma forma ou de outra. Concentrar-se unicamente na cura, se essa fosse a sua vontade.
Havia que obedecer a dois horários de visita na UTI e no máximo duas pessoas poderiam ingressar com duração de 30 minutos. No primeiro horário de visita, às 17,30 horas, sempre com acompanhamento médico que explicava à família a situação e o estado geral do paciente, exames realizados, pressão e o que fosse necessário. No segundo horário de visita, às 20 horas, eu regularmente o visitava, em geral só, procurando abordar temas que não sobrecarregassem sua mente, como amor, vez por outra brincando, acariciando sua cabeça ou segurando sua mão. Eram conversas, melhor dizendo monólogos, por ele estar em coma, em que, não raro, vi lágrimas escorrendo no canto dos olhos. Isso me deixava feliz e emocionada por entender que ele me ouvia, mas, por outro lado, me causava dor por ele não conseguir se comunicar. Ou, então, a comunicação se resumia a lágrimas. Simultaneamente, minha respiração pesava e a garganta se fechava, sem contar que as lágrimas também brotavam de mim por ver e sentir o sofrimento pelo qual ele estava passando.
Lembro-me, em especial, de uma visita na UTI, na qual, além da lágrima que escorria do canto dos olhos, em paralelo, ele fazia um esforço enorme para abrir os olhos, o que logrou por uma fração de segundo mexendo e abrindo levemente a pálpebra. Uma conquista entusiasmante, mas, ao mesmo tempo, frustrante, por tomar consciência do quanto se empenhou e que nada o demoveu daquele estado.
De janeiro a maio, foi árduo o que a família sofreu, penosa a dor vivenciada em conjunto e difícil em face de um período de muitas decisões médicas e jurídicas a serem tomadas ou planejadas. Mas igualmente um período em que senti a presença de Deus, bem próximo de mim quando me flagrava completamente desamparada. Agradecia a Deus por tudo o que me havia concedido e pedia que me orientasse por qual caminho optar. Recordo-me, como se fosse hoje, quando vislumbrei o caminho a seguir e o passo a passo para a melhor opção. Nunca minha fé foi tão fortalecida e nunca me senti tão abençoada com as orientações que recebia.
Meu irmão recebeu o amor da família, o que não evitou a progressão da enfermidade. Apesar de se alimentar por sonda, teve uma leve melhora, se comunicava com gestos, com o braço e a mão que não estavam paralisados, com os olhos e algumas vezes esboçando um sorriso e movimentando a cabeça para dizer sim ou não. Contudo, a melhora observada não passou daí, até que seu coração parou e junto se foi o sofrimento do corpo.
A morte foi um choque e tive a difícil incumbência de comunicar à nossa mãe. Jamais esquecerei sua reação. Ela chorou muito, quietinha, sem escândalo, sem gestos desmedidos, sem questionar, nem indagar a Deus por que levou seu filho antes dela. Ainda hoje se deixa ficar quieta com o olhar perdido. Se eu me senti só, imagino o que não deve ter sido para minha mãe.
Há que recordar do dia seguinte ao que meu irmão sofreu o AVC, quando minha mãe ficou apreensiva ao não receber o tradicional telefonema do filho – diariamente, de manhã e à noite. Sua bisneta procurou tranquilizá-la, informando-a que seu avô se encontrava internado para controlar a pressão e diabetes. Reiteradas vezes. Temerosos de como a notícia verdadeira iria repercutir numa senhora de 93 anos, muito apegada ao filho. Pouco adiantou, pois pressentiu e sofreu uma queda perfurando a córnea do mesmo olho esquerdo que já não mais enxergava.
A cirurgia na vista durou mais de quatro horas sob pressão nela, e na equipe médica que a operou, do estado de saúde de meu irmão, entre a vida e a morte. Somente quando minha mãe se recuperou e afastado o perigo de contrair ou transmitir infecção hospitalar, é que finalmente foi liberada para entrar em contato com seu filho em estado de coma, recém-transferido da UTI para um quarto do hospital. Ele já abria os olhos, mas apenas ficava olhando, em estado “catatônico”.
Ao vê-lo, precisou ser amparada pelo neto, quase desfalecendo. Chorou baixinho, acariciando seu rosto e dizendo que o amava muito e que estava pedindo a Deus para que ficasse curado. Foi uma visita que marcou a todos.
Transcorridos quarenta e cinco dias, ele levou a mão que não estava paralisada à cabeça, passando pelo rosto e bocejando. Parecia despertar do coma. Já estava com escaras nas costas e na perna em consequência de permanecer tanto tempo numa cama, por mais que movimentassem seu corpo a cada duas horas. No início de abril, foi transferido para uma Casa de Recuperação a fim de se submeter a tratamento com fisioterapeutas e fonoaudiólogas. No entanto, isso não o impedia de voltar para a UTI, quando atacado por problemas respiratórios ou pneumonia.
No dia 13 de maio, Dia das Mães, não pude entrar na Casa de Recuperação por estar resfriada. Foi a última vez em que estive perto dele enquanto ainda vivo. Veio a falecer na manhã de 23 de maio. A sensação de me sentir só atribuo ao fato de que não falamos um para o outro tudo o quanto deveríamos, que muito havia por ser dito e posto em prática na vida. Hoje visualizo esta vida como um misto de ilusões e realidade, que podemos desaparecer de repente, assim como aconteceu com meu irmão, e, no máximo, restar lembranças ou saudades.
Todavia, logo na própria semana do desencarne, pude revê-lo em sonho. A primeira pessoa da família a sonhar com ele. Um sonho bem definido, como se estivesse vivendo aquele instante. Ao lado de quatro pessoas estranhas às minhas relações com quem precisava realizar determinado trabalho, chegamos defronte a um prédio pequeno em uma aldeia da Europa (lembro de lá já ter passado), subindo alguns lances de escada. Tudo indicando que eu lá morava, abri a porta de meu apartamento e alcancei, por meio de um corredor, a sala conjugada de estar e de jantar. Onde divisei meu irmão sentado com as pernas cruzadas e o braço apoiado numa mesa redonda. De pronto notei que ele não mais pertencia ao mundo dos encarnados, o que não me assustou e sim surpreendeu-me: “Você por aqui? Como você está?”. Ainda com uma certa dificuldade para falar, tranquilizou-me quanto ao seu estado e que logo iria trabalhar. À cozinha, uma senhora, que não se virou, dando conta de uma refeição, mas que sabia ser nossa mãe. Segui adiante com as quatro pessoas para o mencionado trabalho.
Minha mãe relembra em seu primeiro sonho que ele se aproximou colocando a mão em seu ombro, chamando sua atenção para não sentir medo porque lá é um bom lugar. No segundo sonho, eu me agrego e andamos por uma estrada, dia claro, muitas flores, mais parecia um jardim, mas também havia casas. Carregávamos flores e meu irmão apontava as casas onde deveríamos entregá-las.
Minha cunhada relatou um sonho de tê-lo encontrado numa igreja, em que ele esclareceu estar bem, mas urgia se dirigir para sua missão. Acompanhado de outra pessoa mais velha, trajada como se fosse um frade, usando um capuz que encobria seu rosto.
A neta sonhou que viu o avô na porta de casa e perguntou se ele estava melhor. Acompanhada da mãe e irmã, indagou a elas se não estavam vendo o “vô”. Disseram que não. Então, ela correu para abraçá-lo, virando-se para a irmã e a mãe. Ao voltar-se para vê-lo novamente, ele não se encontrava mais lá. A neta ficou impressionada pois o sonho parecia extremamente real. Pôs-se o dia todo a comentar para quem quisesse ouvir que o avô tinha vindo visitá-la.
Sua presença, sempre que notada, podia ser através de seu calor e respiração, usualmente ao amanhecer, ou por meio de um vento e arrepio. Ou mesmo apontando, sem nada falar e sorrindo, para uma varanda onde costumava tomar sol num confortável sofá. E depois desaparecer.
Como desencarnou privado de sua autonomia e de sua enorme capacidade de proteger sua família, sem que possamos avaliar o que restou de sua consciência diante do AVC, ele ressurge em sonhos não só para serenar a família, como demonstra já se encontrar apto e desembaraçado de seu corpo para integrar missões no Plano Espiritual, respaldado pela sua trajetória na vida terrena. Lá precisam de almas verdadeiramente missionárias para obrar junto a espíritos que necessitam ser assistidos, esclarecidos e orientados quanto a um desenvolvimento mais humanitário e solidário.
Esgotado seu tempo no plano físico para que outros prossigam seu labor. Dentro e fora da família.

Antonio Carlos Gaio:
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