Depois de completar uma verdadeira maratona de 60 anos para ver reconhecidos, na olimpíada da política, méritos no sistema comunista, é natural esmorecer, relaxar a posição de sentido, abrir a guarda e deixar furos na cortina de ferro, por onde se exibem máculas na reputação e defeitos de fabricação que ocultaram com tanto apuro.
O gigantesco esforço voltado para a Guerra Fria acabou por afetar consideravelmente a tecnologia dos produtos não-militares, ao subdividir as fábricas em 3 seções: militar, de exportação e doméstica. Às primeiras, tudo, bons salários, maquinaria moderna e controle de qualidade rigoroso. Quanto à última seção, ficava com o que sobrava. O que explicava a má qualidade e insuficiência dos bens de consumo. Com uma economia rigidamente entrelaçada e uma estrutura de comando altamente centralizada, o funcionamento se revelou pouco ágil e ineficiente, aflorando a escassez, pois não havia como procurar outro fornecedor.
Em conseqüência, o indefectível mercado negro reassume seu posto, gera uma economia paralela e restabelece informalmente a iniciativa privada. Artigos clandestinos eram contrabandeados do Ocidente ou comprados de estrangeiros que os adquiriam nas beriozki – free shop -, quando não se utilizavam da máquina do Estado para aproveitar o segundo expediente na fábrica-dentro-da-fábrica e produzir jeans, bolsas e jaquetas de couro sintético, óculos escuros, perucas e bijuterias. Pagando operários, contratando gerentes, subornando burocratas para superestimar matéria-prima e desviá-la para a confecção de produtos clandestinos, corrompendo outros para fingirem não ver. Ofereciam participação nas vendas para comercializar os produtos nas lojas, partiram para organizar pontos de vendas espalhados pelo país, desafiando o Departamento de Combate à Apropriação Indébita de Propriedade Socialista.
O uso do cachimbo faz a boca torta, o marxismo na URSS tornara-se um jargão oficializado que referendava o stalinismo como método de direção partidária, a imagem verdadeiramente representativa da ditadura do proletariado. Reproduzindo o mesmo erro cometido pelo Cristianismo, que cedeu lugar à ortodoxia convencional, conservadora e intolerante, onde a pureza de princípios dos apóstolos serviu de tapete para o desfile da hierarquia aristocrática da corte papal.
A morte de Brejnev em 1982 lega para o futuro soviético uma gerontocracia, onde uma camarilha senil e ultrapassada, preocupada em receber homenagens, cravar medalhas no peito, colecionar automóveis raros, e enaltecer a pátria de Stalin, não se deu conta da saturação que ditaduras e intervenções estavam provocando. Tanto que repercutiu mal nos círculos esquerdistas a pressão sobre os dirigentes da República Popular da Polônia para interditar o movimento sindical Solidariedade, soou como a morte anunciada do comunismo.
Forçando Deus a intervir, Ele que se mantivera neutro ao longo da epopéia comunista. Propiciando à Polônia devolver a humilhação do Corredor Polonês e da ocupação disfarçada de 50 anos, arvorando-a no papel de verdugo do comunismo. Através de seu emissário, o papa polonês, João Paulo II, o João de Deus, que cravaria a cruz bem no coração do monstro que o capitalismo vitaminou e o comunismo pouco se preocupou em travesti-lo de bom moço. Auto-suficiência essa baseada no fatalismo da proletarização do planeta e dos ricos não abrirem mão de sua hegemonia e poder de discriminar.
A evolução dos fatos políticos e econômicos apontava para a globalização. O país que se excluísse, se isolaria ao não acompanhar pari passu o avanço da tecnologia, facilmente um continente poderia se transformar numa ilha. Os círculos concêntricos que espelhavam a expansão da União Soviética numa bolha começaram a se desfazer, entrecruzando tendências, idéias e abordagens numa era de transição que desconstruiria o mito do saber monolítico, do monoteísmo ideológico e de se arrogar íntimo da Morte para dispor sobre a vida de concepções e seres inconvenientes ao status quo da ideologia adotada – qual mesma? Não foi por outra razão que abortou-se na sala de operações de um moderno hospital, a tentativa surrealista de restabelecer o stalinismo, ao investir no poder Yuri Andropov, antigo chefe da KGB – positivamente, o comunismo extrapola crises nervosas e úlceras incuráveis.
Em abril de 1985, chegava ao poder o coveiro do stalinismo, com um amplo programa de reformas democráticas que, em poucos anos, mudaria sensivelmente a disposição geopolítica do planeta. Mikhail Gorbachev declarou moratória nuclear unilateral, abrandou a censura à imprensa, libertou os presos políticos e iniciou a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão. Esvaziou as funções do Pacto de Varsóvia e desmilitarizou o teor das conversações internacionais sobre assuntos estratégicos.
Normalizou o abastecimento de bens de consumo e aumentou a liberdade de expressão, ao popularizar a perestróica (reestruturação do sistema econômico) e a glasnost (transparência). A Guerra Fria foi pro espaço, mas suicidaram a União Soviética, cuja transição para a globalização não observou a mesma cautela e maturidade da China. No arder do confronto denominado Guerra nas Estrelas, o presidente e ator chinfrim Ronald Reagan levou a melhor no comando da derrocada do regime comunista. O que lhe custou o mal de Alzheimer, não se brinca impunemente com maldições na terra das matrioshkas.
Multiplicaram-se os movimentos democráticos, milhares de alemães-orientais começaram a deixar o país aproveitando o clima de abertura. As autoridades evitaram um enfrentamento para afastar o risco de um banho de sangue como o da Praça da Paz Celestial, em Pequim. Pagaram caro a tentativa de implantar uma sociedade inspirada na igualdade social, que revirou o mundo com Marx e suas teorias a desencadear ódios hidrófobos em interesses atingidos.
Em 1989, o Muro de Berlim é destruído a golpes de picaretas.
O fim do comunismo, desmonta-se a União Soviética, as repúblicas ganham independência, torna-se à Rússia branca eslava, impregnada de báltico, turcomano, tártaro, turquestano e siberiano. Ao examinar detidamente, por uma semana a fio, a fisionomia de Ivan, o Terrível, na galeria Tretyakov, um estudante retalha sua cara estampada num quadro, sob o pretexto de desmontar seu espírito.
Removeram o corpo de Stalin do mausoléu de Lenin e o enterraram nas muralhas do Kremlin numa discreta sepultura, se valendo do mesmo processo que usou contra os seus adversários políticos, ao rebatizarem cidades, praças e ruas – só não retocaram fotos oficiais. Limparam as prateleiras de bibliotecas e jornais de suas diretrizes e orientações, para arquivar morto nos porões a coerção que castrou a audácia intelectual e a conotação crítica que caracterizavam o marxismo.
O bom filho retorna à casa. Escaldada pela rigidez comunista que a obrigou despir-se do manto imperial, símbolo de um poder aristocrático e paralelo, a Igreja Ortodoxa volta ao convívio estreito com seu rebanho, inserida em uma realidade que pede cautela e humildade. Pois que a KGB também despiu-se da farda para disfarçar-se de civil, entranhada na burocracia que resultou do desmonte. Da qual não se exclui a Igreja, que permaneceu ortodoxa na tradição em manter os fiéis de pé na missa e na devoção aos santos. Sentar desconcentra a fé. Incursos estamos sempre no pecado, natural a penitência.
Lenin não chegou a meter a mão na massa, os tiros de Fania Kaplan mudaram a história do comunismo, que seria outra nas suas mãos. Foi embalsamado para se transformar num mito, um ícone a exemplo da foice e martelo. Matando Cazuza 70 anos depois e sua ideologia na poesia “eu quero uma pra viver”, deixando a esquerda órfã e o mundo à mercê do império que sobrou, os Estados Unidos. À procura de outro Império do Mal e de uma defrontação sem fim, seja econômica, ambiental, tecnológica, bacteriológica e explosiva, a fim de preservar um poder sem fim.
A população russa diminuiu de 170 para 140 milhões, resultantes do desaparecimento maciço de velhos comunistas com a nova envergadura do capitalismo, que os deixou descontentes, amargos, doentes, morrendo à mingua com um salário-mínimo de 15 dólares. Face a face com a avaliação do FMI, quanto aos tesouros herdados do czarismo, em função de empréstimos solicitados por Yeltsin: 5 trilhões de dólares.
Assim, os sonhos de Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, e Lenin foram realizados, mas a força bruta e o totalitarismo personificados na alma de Stalin descrevem com rigor a história da Rússia, a Rússia de todos os czares, que abortou sua história em meio a tantos mistérios.
Por mais repressivo que tenha sido, o povo russo ama o seu país. Juntos passaram pela revolução comunista, por guerras e expurgos, não perderam a consciência de que são especiais. O sofrimento revela a face da tragédia que mapeia a sua história e a sua alma, venceram 500 anos de atraso e graças ao seu trabalho se tornaram uma potência de cultura inquestionável.
Tolstoi, no romance Ana Karenina, afirmou que toda felicidade se assemelha e todo infortúnio tem seu caráter particular. Na sua vida plena de adversidades, atormentado por crises existencialistas que o transformaram num crítico encarniçado dos poderes estabelecidos e da Igreja Ortodoxa, que o excomungaria, era a felicidade, ao contrário, que assumiria uma singularidade especial. De nome Iasnaia Poliana (campo claro, em russo), a propriedade rural onde nasceu em 1828 e que freqüentou até morrer, em 1910.
Por onde andou, Moscou, Cáucaso ou nas altas esferas da Europa, se cansou dos círculos aristocráticos e intelectuais, dessa horrível classe literária, reclamava. Era para Iasnaia Poliana que o conde Tolstoi se dirigia. Em busca de paz. Cercada de bosques e pequenos lagos, com uma bucólica casa no topo de uma pequena colina, Iasnaia Poliana é um lugar onde a felicidade parece muito próxima. Foi lá que escreveu seus romances mais famosos e consultou mapas para reconstituir as manobras militares dos exércitos francês e russo, descritas em Guerra e Paz.
Em busca de uma verdade íntima de caráter místico, acabou por dedicar-se a uma vida de comunhão com a natureza e tornou-se um pacifista vegetariano, trajado como um mujique. Absteve-se de sexo e engajou-se em atividades filantrópicas. Convencido de que ninguém deve depender do trabalho alheio, buscou a auto-suficiência e passou a limpar seus aposentos, cortar lenha, lavrar o campo e produzir as próprias roupas e botas. A contragosto viu sua casa atrair discípulos que pretendiam viver segundo seus ensinamentos.
Ivan, Pedro e Lenin, todos mortos aos 53 anos, uma cabala reveladora de que o urso gigante da Rússia agora se acalma, com laivos de hibernar-se, para ceder seu papel histórico e epopéico a outra nação. O comunismo afundou como o continente perdido da Atlântida, para reaparecer um dia, livre dos rigores do General Inverno que o submergiu. O planeta ainda não estava preparado para conquistar uma unidade que solucionasse a injustiça na distribuição de ganhos e a falta de solidariedade que nos mantém no estado de ignorância.
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