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O ESCORREGADIO

Um dos maiores truques do homem para uma relação não se consolidar é brigar à toa. Ou exagerar no tom de aborrecimento. A fim de conseguir tempo e espaço para sair atrás de outras, cheio de razão, com a famosa linha de argumentação para reforçar o álibi: “a gente está dando um tempo”, ou “nós estamos estremecidos”, ou “a gente tinha quase que terminado” ou “só não me separo por causa das crianças, mas a gente não tem mais nada”. E simplesmente arrumar mais uma namorada em caráter fixo, tendo ainda a cara-de-pau de exigir exclusividade.
O ideal é quando a mulher ainda fica atrás, pedindo uma definição da situação, achando que, se for a eleita, está sendo homenageada. O malabarista argumenta com meias-verdades, lembrando que a alertou desde o início quanto à sua condição. Divertindo-se com o absurdo dela reclamar de atenções, mimos e presentes dispensados à mulher oficial.
O que mais irrita a mulher num homem é a sua absoluta falta de transparência. Quando responde com frases curtas e desconversa. Um livro difícil de ler porque não deixa pistas para chegar ao âmago de sua questão. No máximo libera algumas páginas sobre sua evolução profissional, sucessos e contramarchas que se renovam com projetos, as disputas em torno que teve de enfrentar. Falar de si, no entanto, é como interpretar a África, um elo perdido equivalente a devassar seu universo íntimo.
O escorregadio, o tipo. Um trem que vai das sensações aos medos, com duas paradas nas fantasias e desejos. Disposto a alcançar o destino através de curvas sinuosas, a encarar aclives porque devagar se vai ao longe, a uma velocidade cruzeiro de modo a se poder apreciar a paisagem com o cuidado que ela merece. Parando sempre que for necessário para reabastecer. Com o freio nas mãos, alerta ao menor sinal de desembestar. Uma pergunta que não quer calar, se não soasse o apito para que ela entre a bordo e seja dada a partida.
Usa de lógica para abrir suas sensações, procurando encadeá-las com início, meio e fim. Com umas pitadas de sinceridade onde não tiver nada a perder ou pôr em risco. Contar uma história que a envolva e a deixe à mercê de suas próprias opções, parecendo desinteressado a ponto de não ameaçá-la, mas sempre próximo, visando minar suas defesas. Extremamente atento ao momento em que ela entregará os pontos e ele poderá consumar o ato final sem o menor sinal de resistência.
As fantasias são sexualizadas, nas quais ela o surpreende procurando laçá-lo com uma iniciativa da qual ele nunca foi alvo ou nem mesmo havia tomado conhecimento. Afinal de contas, acumular experiências é o que vale. Ou então ela se declara rendida ao seu encanto, transparecendo que esperava há tempos que ele desse vazão a realizar tudo que sua imaginação determinasse; se antes não se abrira, fora por medo de cair perdidamente apaixonada de modo a redimir arrebatamentos passados. Em suma, fantasias catalogadas à disposição do sultão.
Os desejos se resumem a poder se encaixar nos sonhos que as mulheres alimentam a respeito dos homens. Ser aceito na realidade delas, mesmo sendo figura de ficção. O escorregadio não se considera num baile de máscaras, apenas interage com o estado brutal de guerras na selva urbana, tamanha a competição e o consumismo que deformam o desenvolvimento de sua identidade. Procura fugir do pesadelo de punhetas apressadas e se inserir no espetáculo em que o sabor da vida tem o gosto de algo que se espera e jamais acontece.
Os medos, encerrados na caixa-forte da família. Desde pequeno, sempre se preocupou em não se expor – significaria revelar suas deficiências. Falho de caráter, de conteúdo emocional desequilibrado, só não é psicopata porque quer se dar bem na vida, embora caraminhole perversidades que não dá curso por covardia. Adora surpreender para confundir o juízo que se faz dele, já que, por ser uma fraude, tem medo de ser descoberto.
“Quem ele está pensando que é? Entra pela minha casa adentro a querer casar e viver o resto da vida comigo. Não tenho estrutura para agüentar esses rompantes quixotescos. Me obriga a separar o joio do trigo, o bem do mal, e distinguir o futuro do presente, apoiado ainda no passado.” As mulheres reclamam que o escorregadio não abusa do beijo; quando o faz, é com absoluta consciência de envolvê-las na trama. O beijo apaixonado, não voluptuoso, dissipa qualquer vacilo e a acorrenta, porquanto suga suas fantasias e subliminarmente transfere a certeza de um amor que abala, que mexe com seus neurônios, que tira o chão e descontrola sua respiração. Para não falar da temperatura, que sobe em descompasso com o corpo que se debulha em soluços de êxtase, um traço da fidelidade que removerá montanhas. Se braços e pernas desfalecem, pouco importa, é a entrega em curso.
Missão cumprida para o escorregadio. Ele está no lucro. Pode cruzar os braços e acender o charuto. Sem perder a ternura, sequer falar grosso. Sem sair do lugar. Sem mover uma palha. Um fenômeno ainda não estudado à luz da psicanálise, dada a sua condição de escorregadio não fixar o perigo que representa.

Antonio Carlos Gaio:
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