O pai que é avô chega na escola para apanhar seu filho e a professora pergunta qual é o nome de seu neto.
O pai que é avô parte da premissa de que a menor distância entre dois pontos não é uma linha reta. Se baseia na História, quando a miscigenação retratada na atual cara do Brasil se iniciou no estupro da índia, explorando o caráter aberto da cultura nativa que denominou de pueril para tirar proveito. Prosseguiu na negra escrava, copa e cozinha do regime colonialista, propiciando o surgimento de um mercado de cartas de alforria e na evolução para o estupro consentido. Diante de uma sexualidade assim escarrada, com que sentido estabelecer padrões e limites que visam subtrair seu direito ao prazer no frigir de ovos?
Cresce a olhos vistos o pai que é avô. Agora todos consideram normal os efeitos da passagem do tempo na aparência, desde que revigorados por um banho na estética e um astral de menino. Todavia, com o filho no colo o seu retrato envelhece e revela o tombamento de seu maior patrimônio.
O pai que é avô acha uma odiosa injustiça o tempo deixar marcas indeléveis no corpo e o seu retrato na carteira de identidade perpetuar-se, até chegar um desavisado desrespeitoso e contrapô-lo à realidade:
– Tem certeza de que esse aqui é o senhor!
A passagem dos anos obriga o pai que é avô a convencer as pessoas ao redor que merece ser reincluído no mercado do amor que gera frutos, pois que o homem, biologicamente diferente da mulher, segue procriando – Deus assim o quis, ao escolher Abraão, entradas e bandeiras para o Estado de Israel.
O pai que é avô é capaz de fazer das tripas coração para conservar a aparência e a juventude em termos energéticos, procurando demarcar as diferenças entre o novo e o velho. Como não saber esperar amadurecer as idéias para gozá-las na sua plenitude. Falta um diário quilométrico de vivências que denunciem as segundas intenções que ferem de morte os enlaces conjugais. Aceitar as perdas sem vingar-se. Pensar que o mundo começou a partir de agora, quando adquiriu essa maravilhosa consciência que o tornará um superbacana.
O drama pior do pai que é avô é querer se distanciar do envelhecimento acelerado e traiçoeiro, do qual não está livre, já que o fim é o limite. Em virtude da ciência estender a vida útil, suas feições poderão se transformar nas de um matusalém em doloroso contraste com a ampliação de sua sapiência lograda na luta pela sobrevivência. Senão, já teria morrido de desgosto ao desistir.
Pensando nessa espiral sem fim, o pai que é avô descobre que fora do amor não há salvação. E viaja ao centro da Terra, que é a sua família. Acolhe a filha como o maior amor de sua vida e a põe num lugar de honra que constrange a esposa – embora sua fidelidade a tranqüilize. Se filho, o legítimo herdeiro da varonia que só lhe dá orgulho, o de valer a pena de ter encarnado para gerar uma descendência. Antes tarde do que nunca, a continuidade que desopila o fígado e a certeza de que se desincumbiu da missão, fato esse que lhe tirava o sono. A realização estampada no filho.
Não vai deseducar como avô, mas os deixará se enfiarem debaixo da mesa para comer bombom roubado ou brincar de médico. Tem pai que é cego, mas para que morder nos calcanhares que nem um hitlerzinho sem convicção? O pai coruja corre o risco de ser enganado com tanto amor para dar, mas em compensação, jamais será esquecido – o maior desejo para o pai que é avô, mais próximo do espírito do que da carne. Atinge uma maturidade que não faz sentido para a mulher, que é obrigada a tirar leite de pedra desde que o filho nasce.
Põe uma família nova no lugar da antiga em que não disse a que veio. Troca fralda, dá papinha, abre mão do sono da madrugada para atender o choro do bebê quando o encargo é naturalmente da mãe por conta do hábito que se cria com a amamentação. Permite que a criança se enfie na cama entre o casal e interrompa o idílio pré-sexual. Vai ao circo, de mãos dadas leva-o à escola, conta histórias, brinca de boneca, monta castelos na areia, participa de reuniões escolares.
O pai que é avô se apóia no que existe de mais moderno para ter vez. Enterrou a máxima “esse relacionamento não deu certo”. Ao contrário, deu certo enquanto durou. Vinícius de Morais já tinha posto na conta do infinito enquanto dure. Caso contrário, é a morte. E condenar-se à síndrome de Tancredo Neves, depois de se eleger presidente, passar por um calvário e não assumir porque morreu: “Eu não merecia isso”.
Ora, se o amor termina numa ilusão de ótica e renasce com a ilusão de poder amar de novo, porque acreditamos, convictos, que o amor não é uma ilusão, cabe ao pai que é avô pretender ter um filho para provar a ela seu amor, rasgada confissão de que nunca foi capaz.
Aos 90 anos, ele dirá: durmo pouco, sei muito, mas esqueço de tudo.