Silvana Cardoso Viana Salgado nunca soube quem era seu pai. Sua mãe sempre se recusou a contar, inclusive escondendo do resto da família. De um tempo que ter filho de uma relação fortuita era malvisto. Fora de um casamento não abençoado por Deus em igreja, Silvana foi exilada por sua avó para ser amamentada no Maranhão e retornar adotada por uma família de negros na mesma Belém do Pará, onde nasceu, mas distante de sua família natural, relembrando um tempo mais longínquo ainda: a escravidão.
No entanto, Silvana foi abençoada ao ser acolhida por Silésia Isabel Salgado, mãe de santo além de mãe adotiva, que a espiritualizou no umbandismo e no espiritismo de mesa branca, que viria a marcar sua trajetória. Passaram-se apenas 8 anos e sua mãe adotiva veio a morrer, fazendo com que, somente nesse momento, tomasse conhecimento de seu exílio e adoção, através de uma carta que ela lhe deixou, podendo decidir por continuar com a família atual ou por um orfanato em Belém.
Preferiu ficar em companhia dos filhos, verdadeiros ou não, da mãe de santo, que prosseguiram espiritualizando-a, mas pouco puderam fazer diante da miséria que bateu à porta de todos e no terreiro. Silvana não pôde mais estudar por não ter dinheiro para comprar uniforme e livros. Aos 12 anos, começou a trabalhar acumulando babá e doméstica – ainda com um pé na escravidão. O que a levou a buscar em catálogo telefônico o sobrenome de sua família de sangue.
Sua mãe foi quem atendeu o telefone, necessitando de pronto-socorro ao ouvir a voz de sua filha. Não adiantou voltar ao seio materno, pois Silvana se sentiu como uma estranha no ninho familiar original. Tanto que, ao lhe pedirem para ser cuidadora do avô no hospital, prestes a morrer de câncer, acabou contando para ele toda a sua história. Urgia não esconder mais nada, já que ele viria a morrer, embora recomendada pelos parentes para não o fazer. Prontamente o avô pediu perdão em nome da mulher, a avó já falecida, a responsável pelo exílio e banimento da neta.
Aos 14 anos, Silvana se dirigiu ao Rio de Janeiro para trabalhar em casa de família paraense e kardecista por 7 anos, até seu patrão falecer vítima de um aneurisma. Impregnada de espiritismo, casou-se com Luis, abrindo mão do registro no civil ou no religioso, com quem teve o filho Lucas. Mas o pai não pôde ver o filho se formar em Administração de Empresas – um câncer no cérebro o levaria mais cedo. Com Natanael, seu próximo marido, uma escadinha de filhos, Pedro Paulo, Maria Clara, que formaria família a partir dos 12 anos, e Nathan, cujo drama se iniciou antes de nascer.
Passou do tempo no útero da mãe e defecou, obrigando os médicos, no parto, a higienizar o aparelho genital de Silvana, o que deixou Nathan entre a vida e a morte por 30 dias, ainda mais que contraiu pneumonia e ficou com sequelas de asma e hiperatividade, hoje desaparecidas. Nathan se salvou graças a um médico de rabo de cavalo, que observou Silvana quanto a interromper seu choro copioso temendo perder o filho para começar a rezar com fervor. No dia seguinte, ninguém no hospital sabia de que médico se tratava – provavelmente, um atento e piedoso espírito protetor.
Tal como acontecera com ela em busca de sua mãe e família, Silvana reedita sua caminhada e corre atrás do filho de outro casamento de seu segundo marido, localizado através do Facebook, e facilitado por ser a cara do pai Natanael, trazendo-o para o convívio entre seus novos irmãos. Bem a calhar para Jonathan que, em seguida, ficou preso injustamente por 3 meses, por estar no lugar errado fazendo a coisa certa por ocasião de um assalto. O que obrigou o casal a contrair dívida com agiotas para pagar advogados de porta de cadeia e livrarem o garoto do inferno da prisão.
Natanael se confessa ateu e descrente de todas as religiões. Enquanto Silvana, que sempre desfilou em escolas de samba na ala das baianas desde ainda adolescente, apesar de geralmente reservada a mulheres mais velhas, senão idosas, segue sendo incentivada por todas as baianas a mergulhar de cabeça no umbandismo ou no candomblé. Permanecendo, contudo, indecisa. Apesar de uma base espiritual muito bem enraizada e estruturada por Silésia desde que nasceu, a despeito de rejeitada já no útero.
O barco de Silvana veio dar num porto seguro. Na minha moradia, no alvorecer de 2019. Apesar de ter colhido mais do que um pedido de perdão do patriarca da família, Silvana mostrou desprendimento, iniciativa e coragem à procura de suas origens e, na sequência, na construção de sua família. Sempre despida de rancor, de ressentimento e de inconformismo com os percalços e injustiças que teve de superar.
O que o detém para se decidir pela espiritualidade? Esperar pelo seu tempo? Ou ver-se projetado num poço sem fundo ou abismo sem precedentes por não ter dado um passo à frente? Não chega a tanto, pois Deus é magnânimo e compreende até onde vai a extensão de seu dilema de crer ou não crer. No máximo, um breve empurrão que o leva a se esparramar no chão, consequência de um tombo inesperado. Para despertá-lo. Foi o que aconteceu comigo ao entrar numa sessão de cinema já iniciada, incitando o breu a me nocautear e romper o bíceps do antebraço, o símbolo da força e da potência.
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