O poeta Vladimir Vladimirovitch Maiakovski matou-se no dia 14 de abril de 1930, aos 37 anos, quando deu um tiro no peito. No poema “A flauta vértebra”, já antecipava: Penso, mais de uma vez: / seria melhor talvez / pôr-me o ponto final de um balaço. / … Hoje executarei meus versos / na flauta de minhas próprias vértebras. Apesar de ser um grande rebelde e guerreiro, quase de nascença, que desafiou o próprio Deus. Sua vida e obra per¬ma-nece um emblema deste que foi um dos mais impor¬tan¬tes acon¬te¬ci¬men¬tos his¬tó¬ri¬cos do século XX: a Revolução Russa.
Deixou um bilhete:
A todos
De minha morte não acusem ninguém, por favor, não façam fofocas. O defunto odiava isso.
Mãe, irmãs e companheiros, me desculpem, este não é o melhor método (não recomendo a ninguém), mas não tenho saída.
Lília, ame-me.
Ao Camarada Governo: minha família são Lília Brik, minha mãe, minhas irmãs e Verônica Vitoldovna Polonskaia.
Caso torne a vida delas suportável, obrigado.
Os poemas inacabados entreguem aos Brik, eles saberão o que fazer.
Como dizem: / caso encerrado, / o barco do amor / espatifou-se na rotina. / Acertei as contas com a vida / inútil a lista / de dores, / desgraças / e mágoas mútuas. / Felicidade para quem fica. / Assinado VLADIMIR MAIAKOVSKI / 12/IV – 30.
Ele foi um dos mais magis¬trais reno¬va¬do¬res da poe¬sia no século XX, um destruidor de cânones e ameaça aos gostos estabelecidos. Não foi apenas um grande poeta, nem uma mente brilhante. Impressionavam o poder de ação de sua oratória, suas polêmicas e poética com as massas, a quem a observação atenta e a imaginação criativa ajudavam a apresentar qualquer conceito abstrato de forma viva e figurada, com leveza e maestria de linguagem, associadas à irreverência em cascata.
Sua base de formação foi o lançamento do futurismo, que pregava a destruição da arte anterior (inclusive a simbolista, impressionista, naturalista), especialmente em seu individualismo e sentimentalismo, uma bofetada no gosto público. Mudar sua estética para limpar e destruir até achar sua natureza primitiva. Cultuando em contrapartida a mudança, a invenção, a velocidade, a produção, a máquina, a glorificação do patriotismo e da guerra (não era anarquista) – “Blusa Fátua”: Não sei se é porque o céu é azul-celeste / e a terra, amante, me estende as mãos ardentes / que eu faço versos alegres como marionetes / e afiados e precisos como palitar dentes!
Jamais cruel com as pessoas, por outro lado, Maiakovski era irreconciliável e impiedoso em discussões literárias fundamentais, quando não poupava seus interlocutores – “De V Internacional”: Eu / à poesia / só permito uma forma: / concisão, / precisão das fórmulas / matemáticas. / Às parlengas poéticas estou acostumado, / eu ainda falo versos e não fatos. / Porém / se eu falo / “A” / este “a” / é uma trombeta-alarma para a Humanidade. / Se eu falo / “B” / é uma nova bomba na batalha do homem.
Dos mais notáveis porta-vozes da Revolução Russa, impregnado desde cedo pelo alvorecer das obras socialistas, no início da consolidação do novo Estado soviético, juntou-se a outros escritores e artistas para, em seu trabalho, aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social – sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Entregava-se a tudo com extrema intensidade, de corpo e alma, o coração tem domicílio no peito. / Comigo a anatomia ficou louca. / Sou todo coração – / em todas as partes palpita. Sempre cen¬trando fogo na trans¬for¬ma¬ção concreta da vida, sendo neces¬sá¬rio par¬tir em mil peda¬ços a fábula da arte apo¬lí¬tica!
A relação de Maiakovski com as mulheres era de cavalheiro, muito generoso e cortês, nunca abandonando uma mulher, despedindo-se dela com uma delicadeza galante para conservar a relação amistosa – Amar não é aceitar tudo. Aliás: onde tudo é aceito, desconfio que haja falta de amor.
Foi o primeiro poeta soviético que atraiu o público para ouvir poemas em grandes auditórios. Após a Revolução e, principalmente, a Guerra Civil, havia que conquistar um público totalmente novo, despertar nele o interesse pela poesia e sua sonoridade, renovando a linguagem poética face a Revolução Socialista ter posto na rua a fala rude de milhões de pessoas não familiarizadas com o discurso intelectualizado, que lhes parecia estéril. Com o intuito de encontrar o caminho comunista para todos os tipos de arte, afastando dela as afetações e maneirismos individualistas em favor do coletivo consciente, que ganhava consistência dia após dia. Uma infinidade de acontecimentos, fatos e detalhes do cotidiano, como a humanidade nunca antes tinha presenciado ou sido informada, deveriam ser agora registrados pela ótica socialista, e não mais pela visão capitalista que imperava nos países colonialistas, instrumentada pelos barões da imprensa em tempos nos quais ainda se relutava transitar da monarquia para a república e o parlamentarismo. Sem contar as dificuldades enfrentadas com os inimigos internos, que criavam obstáculos para a realização dos ideais da Revolução Comunista.
Maiakovski não era um Don Juan e não suportava conversas promíscuas sobre mulheres. De natureza monogâmica, não se alinhou com a moral da Revolução Comunista que estava em moda nos anos 1920, legalizando o amor livre do qual Lília Brik era adepta. Por isso Maiakovski causou estarrecimento em 1915 por estar se relacionando com Lília, mesmo ela sendo casada (de fachada) com Ossip Brik, todos sob o mesmo teto, continuando a morar juntos mesmo quando anos depois findou o ménage à trois – antes ele havia namorado sua irmã, Elza Triolet.
Lília Brik foi uma mulher de visão na vida de Maiakovski, sempre presente em sua trajetória literária e artística, embora ele soubesse se autopromover, e muito bem, quanto mais cuidar da execução e divulgação de sua obra. Mas ela soube como se abastecer à sua custa. Depois que o poeta se suicidou, Lília Brik deu asas à imaginação para fazer voar o legado de Maiakovski em busca de outros leitores e pesquisadores da sua literatura, eternizando sua obra ao preservar sua memória até morrer em 1978, aos 86 anos, umbilicalmente ligada ao poeta, quando também se suicidou. O disposto no bilhete testamento de Maiakovski não deixava margem à dúvida quanto ao seu papel post mortem, fazendo jus a 50% dos honorários pelos direitos autorais (a outra metade destinar-se-ia à mãe e às irmãs). Para protegê-lo de sua impulsividade na trajetória política, suspeitava-se que Lília Brik fosse agente da NKVD (futura KGB). Mas o que ela não suportava eram os relacionamentos de Maiakovski, principalmente quando tendiam para o casório – cartas deveriam ser enviadas para sua irmã Olga, senão Lília destruiria quaisquer vestígios de amores do poeta.
Apesar de Maiakovski ter se alinhado com a Revolução Comunista, servindo-a com fé e certeza do que ela representaria para o povo russo, lhe preocupava a situação da sátira, em que dedetizava todas as bobagens do cotidiano. No entanto, traria prejuízos ao Estado Soviético para os defensores da pureza da literatura proletária, já que a sátira não poderia coexistir com a ditadura do proletariado por se constituir um golpe no Estado comunista e em sua sociedade ao entregar o ouro ao inimigo com suas inerentes críticas. Havia que refletir e priorizar a tensão da luta de classes, a industrialização, a vida da classe trabalhadora, o personagem principal inserido no trabalho, no coletivo e na atividade social, senão se detectaria um espírito antissoviético sublevando e as críticas chegariam aos ouvidos dos órgãos de controle da ideologia.
Maiakovski chega a uma terrível encruzilhada – ele que sempre as enfrentou de peito aberto e palavras em punho. Desenha-se em sua alma uma contradi¬ção cruel entre a uto¬pia e a tra¬gé¬dia da perda gradativa do ideal de revolucionário comunista. De um lado, enga¬ja¬do na cons¬tru¬ção do soci¬a¬lismo e venerando Lênin; de outro, o sur¬gi¬mento do espec¬tro do sta¬li-nismo, que tra¬zia no bojo a falta de liberdade no regime comunista, a buro¬cra¬cia e o eclipse do sonho – o estabelecimento de critérios que definiriam a arte revolucionária e propagandista também iria funcionar como censura. Dividido entre os ver¬sos de lou¬vor às con¬quis¬tas socialistas e as sáti¬ras con¬tra as ano¬ma¬lias do novo poder. A refletir a dualidade da consciência de Maiakovski, diante dele até o fim de sua vida, ecoando no poema “A plenos pulmões”: também a mim / a propaganda / cansa, / é tão fácil / alinhavar / romances? / Mas eu / me dominava / entretanto / e pisava / a garganta do meu canto.
Os burocratas do regime pretendiam reduzir a poesia ao realismo comunista em detrimento de valores inerente às artes como simbolismo, lirismo, a crítica satírica, o exagero na ênfase que redunda no histrionismo, as vicissitudes na paixão e no amor que levam à imprevisibilidade e à exaltação do individualismo. Ao tempo em que a direção do partido passou a apoiar a associação dos escritores proletários, inserindo nos fundamentos da literatura e da arte os princípios do proletariado e do partido.
Em 1925, Maiakovski conheceu a emigrada russa Elli Jones por ocasião de uma palestra que proferiu em Nova York, durante os três meses de estada pelo México e Estados Unidos, onde circulou por Cleveland, Detroit, Chicago, Pittsburgh e Filadélfia para propagar a ebulição de toda energia do povo soviético, resultante do primado da iniciativa coletiva. Os dois tiveram um romance-relâmpago e a sua única filha nasceria um ano depois que o poeta já havia retornado para a União Soviética. A existência dessa filha foi mantida em segredo pela mãe e pelo próprio Maiakovski, que temia mais uma ingerência de Lília Brik em sua intimidade, cuja ascensão sobre ele não combinava com a personalidade de Maiakovski de não baixar a cabeça para ninguém.
(Helen-Patricia Jones Thompson cresceu sabendo que era filha do poeta – desde os 10 anos -, mas não podia comentar fosse com quem fosse. Tornou-se professora de filosofia numa universidade nova-iorquina, publicou vários livros e somente em 1991, poucos anos após a morte da mãe e do padrasto, foi à Rússia revelar a sua identidade.)
Maiakovski abominava a solidão, mas bem que sabia ficar só na presença da amada, pedindo a ela que falasse baixinho e carinhosamente, pois borbulhavam muitos poemas em sua mente. Como a artista plástica Elena Semenova, com quem filosofou: em quem acreditar, pode-se acreditar em alguém? E a estudante universitária Natasha Briukhanenko, que o acompanhou num longo périplo literário por inúmeras cidades russas onde ele se exibia.
Embora sentisse cada vez mais fortemente o endurecimento da política na área da literatura e a intransigência absoluta com relação a outras tendências e grupos literários, em nenhum momento Maiakovski se desligava do ritmo da vida literária e política: o tempo é roído por vermes cotidianos. As vestes poeirentas de nossos dias, cabe a ti, juventude, sacudi-las.
Nos últimos dois anos de sua vida, mostrou-se ativo trabalhando muito e se diferenciando dos anos anteriores pelo ritmo e intensidade em apresentações, reuniões e discussões, sempre à vista, no centro das atenções, gozando do interesse da crítica e da imprensa. Com a criatividade a mil escrevendo peças de teatro como “O percevejo” e “Os banhos” (plena de versos satíricos), o poeta parecia não ter mais para onde crescer. O desconforto interior e os pressentimentos alarmantes em razão da situação da literatura, certificou-o, com o sucesso de “O percevejo”, de que a palavra, personificada na ação teatral, soa mais forte do que num livro, e até mesmo num jornal. O seu ar zombeteiro intimidava o senso crítico da época, obrigando a especular quem dos escalões superiores do poder estaria sendo caricaturado.
Restando um ano e meio de vida a Maiakovski, Elli Jones trouxe a filha de 3 anos em Nice para ele conhecê-la. No retorno a Paris, se apaixona à primeira vista por Tatiana Iakovleva, igualmente de família russa que emigrou, alta como ele e esbelta: Na estatura / é a única à minha altura, / fique pois, / sobrancelha com sobrancelha. Os encontros eram diários e duraram mais de um mês, Maiakovski quis casar e levá-la de volta à Rússia, fustigando-a a pensar (temia ela parecer uma idiota ao seu lado) e, o mais importante, a redescobrir-se com a Mãe Rússia: dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz. Acostumada a lidar com a elite, Iakovleva dizia que eles não tinham nenhuma vontade de fazer o cérebro funcionar, enquanto Maiakovski queria pôr freios e domar os sentimentos pequeno-burgueses de Tatiana: Cinco horas, / e a partir de agora / acalma / a densa floresta humana, / esmorece / a cidade povoada, / ouço apenas / a discussão dos apitos / dos trens para Barcelona. / No céu negro / o passo dos raios, / um trovão / de impropérios / no drama celeste – / não é tempestade, / é simplesmente / o ciúme movendo montanhas.
A paixão era sempre impaciente e ávida por uma resposta imediata: não vivi até o fim o meu bocado terrestre, / sob a terra / não vivi o meu bocado de amor. Em uma carta à Lília Brik, escre¬veu: “O amor é vida. O amor é o cora¬ção de tudo. Se ele inter¬rom¬per o seu tra¬ba-lho, todo o resto morre, faz-se exces¬sivo, des¬ne¬ces¬sá¬rio”. Havia algo mais empur¬rando o cora¬ção do poeta para o des¬pe¬nha¬deiro. Seria este o destino fatal de Maiakovski? As mulheres que se apaixonavam por ele não tinham a coragem de tomar uma decisão, temendo que seus sentimentos não correspondessem às expectativas dele e à pressão de sua energia interior? Respirando com dificuldade ao lado de Maiakovski, elas tinham medo. Tatiana Iakovleva não aceitou voltar para a Rússia.
A solidão estava oprimindo o poeta-tribuno, que se via sem opções ao chegar à conclusão quanto à falta de perspectiva da arte produtiva e do trabalho jornalístico para o desenvolvimento da arte poética. Percebia que estava no fio da navalha ao se indispor com os burocratas do partido que ocupavam altos cargos. Os livros de Maiakovski sumiram da lista bibliográfica recomendada nas escolas. As instâncias do poder já se permitiam decidir anonimamente e sem direito a apelações ou recursos o destino de poemas, filmes, romances e quadros. Maiakovski se assegura de que foi proibido de viajar ao exterior e avalia o ato como de desconfiança política. Retumbavam o início bem-sucedido do plano quinquenal (industrialização e construção da infraestrutura do país) e da coletivização no campo, entrando nos eixos do desenvolvimento socialista.
Maiakovski criava e complicava suas circunstâncias, valendo-se de suas ações permanentes: no outono de 1929, conhece a jovem atriz Verônica Polonskaia numa corrida de cavalos. Em suas memórias, ela não se lembra dele como equilibrado ou tranquilo, e sim chegado a extremos, barulhento, alegre e impressionantemente encantador, em trânsito para um sombrio e calado durante horas, irritando-se por motivos fúteis e vindo a se transformar numa pessoa impaciente, difícil e agressiva. Maiakovski soltou o primeiro “eu te amo” quando informado a respeito do casamento de Tatiana Iakovleva e o sonho de acasalar com ela se desfez.
Um romance que convinha ao casal Brik, não visto como ameaça à “família”, mesmo porque foram eles que a apresentaram a Maiakovski, que, nesse momento, só via uma saída: casar-se com Polonskaia para levar uma vida familiar tranquila. No entanto, ela estava amarrada pelos laços do casamento com Iachin e com o teatro, que não queria largar – mais uma mulher comprometida por quem Maiakovski sentia atração.
Não era à toa que encarava a rotina como algo hostil para o ser humano: é melhor morrer de vodka do que de tédio. Maiakovski tornou-se irritadiço e exigiu que Verônica abandonasse o teatro. Ficava cada vez mais inflexível e ciumento, não passando desapercebido dos que estavam ao redor deles, a despeito dos encontros entre eles terem aumentado a frequência, o que resultou na gravidez de Verônica Polonskaia, seguida pelo aborto. O que nela acarretou consequências psicológicas, cansada de mentir e de levar vida dupla, aflorando uma aversão à relação sexual, com Maiakovski não conseguindo aceitar essa aparente indiferença física, insistindo até de forma cruel, tamanha a sua contrariedade.
Contudo, ela o amava, respeitava e humanamente o compreendia, não imaginando uma vida sem ele, pois ficaria triste. Muito embora voltando a se verem, emergissem as agressões mútuas e o sofrimento, que a impeliam a se afastar dele. Maiakovski então exigiu que ela imediatamente se divorciasse e se inscreveu numa cooperativa para receber um apartamento onde residiriam. Verônica Polonskaia escreveria “nossa relação era para Maiakovski como um galho ao qual tentava se agarrar para se salvar. Eu tinha medo de seu temperamento, de seu despotismo em relação a mim”. Tensão interior que tinha de esconder em público.
Isso parece Maiakovski em seu estado normal? Quando era incrivelmente atencioso e elegante com as mulheres, gostando de presenteá-las, bem como à mãe e irmãs. À Verônica, havia dado um lenço cortado em dois triângulos, reservando a outra metade para ele colocar por sobre a lâmpada de sua mesa de trabalho de modo que sua mulher, em forma de lenço, sempre estivesse próxima, amalgamada com sua luz.
Porém, nada em Maiakovski prenunciava o suicídio. Oito anos depois, Polonskaia explicaria que a relação não teve a paz e a sobriedade necessárias, com Maiakovski mal disfarçando o desejo de trancá-la no quarto, se pudesse. Em 12 de abril, já com o bilhete suicida no bolso, confessou à Verônica que se sentia mal e que sem ela ao seu lado tudo se torna desnecessário; somente ela poderia ajudá-lo. No dia seguinte a uma briga horrenda, que os levaram a se hostilizar e a se separar. Encerrada com mais uma reconciliação na qual ela se comprometeu em ser sua mulher, por não poder viver sem ele, mas que seria preciso pensar bem como dizer isso a Iachin. Notava-se que Maiakovski estava completamente infeliz e doente, propenso a cometer atos irreparáveis como colocar Verônica em situação embaraçosa ao seguir seus passos e abrir a relação na presença de todos, inclusive de Iachin.
No dia do suicídio, Maiakovski trancou a porta de seu apartamento com a chave e disse que não a deixaria ir ao teatro. Ele é quem iria para comunicar seu abandono e explicar tudo pessoalmente a Iachin – pronto, começou tudo de novo! Isso depois de ter pedido perdão pelas grosserias e pelo comportamento vergonhoso do dia anterior, suplicando que ela esquecesse tudo. Verônica Vitoldovna Polonskaia respondeu que não podia largar o teatro e ficar condenada exclusivamente ao papel de mulher de seu marido, ainda que ele fosse Maiakovski. Salientando que cabia a ela informar, até para não magoar Iachin, que, “a partir daquela noite, mudar-se-ia para o apartamento de Maiakovski! Na Lubianski Proezd, nº 3!”
Soou um grito dentro do poeta, que ecoou em sua alma: “Todos me dizem não! Somente não! Em todos os lugares, não!”. Ele entrou em deses¬pero, as pai¬xões que viveu, quase todas não cor¬res¬pon¬di¬das, nunca lograram saciar o seu cora¬ção faminto. Enquanto Polonskaia saía, alcançando o corredor em direção à porta do prédio, ouviu um tiro. Teve medo de voltar e ver a cena dele deitado no tapete com os braços abertos e uma mancha de sangue no peito. O relógio marcava 10 horas e 15 minutos da manhã. A carruagem da ambulância veio, mas era tarde. A única bala colocada no tambor atingira o alvo, Maiakovski morrera – não é difícil morrer nesta vida: viver é muito mais difícil.
Sua postura de semideus que derrotava os inimigos com habilidade artística desnorteou-se com sua autoestima ferida. Maiakovski visivelmente deprimido, com os nervos à flor da pele, não conseguiu conter suas explosões emocionais, encolerizado com a perda de sua tradicional coragem e seu humor ferino, esmagado que fora sob o peso da uto-pia que se esfa¬re¬lava e do amor que não con¬quis¬tou. Foi em busca de paz, des¬cansar de um percurso ter¬res¬tre, de fato, exaustivo. Mas por ter sido intenso, extremo, infla¬mado, con¬tra-di¬tó¬rio – e apaixonante. Tarde demais para colar o vaso quebrado. Nenhuma jaula no mundo poderia sitiar o poeta e o enxame desenfreado de seus desejos.
A morte reconcilia todos, ainda mais dessa forma trágica. Chorando muito, Boris Pasternak (autor de “Doutor Jivago”) andava em círculos pelo apartamento de Maiakovski em busca de seu espírito, caso ainda estivesse vagando por ali. A ninguém mais reconhecendo, significativo de seu inconformismo por terem se distanciado. O porquê não se manteve íntegro em sua lembrança, provavelmente em breve iria se esquecer por completo, e só restaria saudades dele.
O comunicado oficial afirma que o suicídio foi provocado por motivos de ordem estritamente particular e não tem nenhuma ligação com a atividade social e literária do poeta, antecedido por uma longa doença da qual o poeta ainda não havia se restabelecido. Um ato falho ao logo se apressarem em afastar qualquer ilação com o cerceamento à liberdade de criar e ingerências políticas do intrépido idealista. Em outro bilhete, Maiakovski disse que não havia o que fazer (para esquivar-se de suas responsabilidades com o suicídio), mas que não o considerassem covarde.
150 mil pessoas, durante os três dias de velório, passaram diante do caixão, chorando a perda de um artista tão carismático e inesquecível por sua ousadia e destemor. Muitos ficaram intrigados com o motivo do suicídio, logo ele que havia condenado a inutilidade do suicídio do poeta Iessienin no poema “A Serguei Iessienin”: Você perdeu o senso? / … com todo esse talento para o impossível; / hábil / como poucos. / Por quê? / Para quê? / Perplexidade.
A julgar pelo bilhete de despedida, esse, pelo menos, Stalin não teria assassinado: o defunto odiaria que levantassem suspeitas. Muito embora se contradiga pedindo para tornar suportável a vida de Brik, mãe, irmãs e Polonskaia, o que pressupõe já circular o insuportável que Stalin destinava aos inimigos do igualitarismo social. A ordem de importância que Maiakovski considerava em seu círculo mais íntimo, encabeçada por Lília Brik, ao lhe entregar seu legado de poemas inacabados em razão de conhecer sua arte escrita o suficiente para decifrá-los, ressalta o mistério da relação de Lília com o venerando poeta, segredo esse que levou para o túmulo. Por outro lado, afirmar não ter saída significa que Maiakovski não decifrou seu futuro por não encontrar uma via de escape, ao não se conformar que o sepultassem em vida quando não permitiram dar asas à sua criatividade, pairando acima do realismo proletário. O mais espantoso é se deparar com outra contradição ao julgar sua vida como um mero caso (encerrado), dos muitos em que ele não logrou ajustar seu coração, mas necessitar de um acerto de contas, que requer coragem para confessar, ao se concentrar no barco do amor, que se espatifou na rotina do cotidiano, desmantelando-se por completo, o que, para bom entendedor, significa que não foi feliz no amor e que isso é motivo suficiente para morrer. Partir sem olhar para trás, caso contrário petrificaria sua alma. Cruzar o rio da morte, onde lá estaria a salvo da humanidade. Conforme detalhou para Lília Brik sobre suas entranhas, o amor é o cora¬ção de tudo, se ele inter¬rom¬per o seu tra¬ba¬lho, todo o resto morre. Ou em versos triscados: sou todo coração, que em todas as partes palpita, a anatomia, comigo, ficou louca. Muito embora, elegante como sempre, tenha desejado felicidade para quem fica.
O ser humano que deixa voluntariamente a vida leva consigo o mistério de sua decisão. Não há como explicar, psicanalisando sua alma, ou sequer penetrar no âmago da questão, quando o suicida declara que não tem saída no despropósito de sua existência. Abandonar a vida significa se retirar de um universo que não se lembra de ter pedido para ingressar e entrar em outro que desconhece ou nega: com explosões do pensamento a cabeça estremece, / ecoando com a artilharia de corações, / ergue-se do tempo / outra revolução – / a terceira revolução / do espírito. Talvez fosse o caso de aceitar o mistério e acatá-lo, perene em todas as ordens de magnitude cuja luz procura neutralizar o obscurantismo que invade, não raro, nossas mentes.
Fonte consultada: MIKHAILOV, Aleksandr. Maiakovski: o poeta da revolução. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Versos de Vladimir Maiakovski