O suicídio de Alberto Santos Dumont, em 1932, no Guarujá, em São Paulo. Era um homem tímido e solitário, cuja personalidade arredia não conseguia se encaixar no meio glamouroso dos seguidores de Ícaro, ainda mais quando alcançou fama por ter realizado o primeiro voo mecânico da História.
O primeiro a voar num aparelho mais pesado que o ar, levantando voo por seus próprios meios, sem a necessidade de uma rampa para lançamento, como o fizeram os irmãos Wright, considerados os pais da aviação nos Estados Unidos. Cumprindo um circuito pré-estabelecido sob testemunho oficial de especialistas, jornalistas e populares, cuja premissa básica era que “planar não é o mesmo que voar”.
Sua criação na rica fazenda de café do pai, em Ribeirão Preto (São Paulo), em fins do século XIX, onde desfrutava da mais ampla liberdade, foi fundamental para formar o temperamento de Santos Dumont e o gosto pela aventura. Desde a infância, tinha uma queda por coisas mecânicas e brincava de conceber e construir pequenas engenhocas, que o distraíam e valiam de grande consideração na família com o seu talento. Sua maior alegria era se ocupar com as instalações mecânicas da fazenda de seu pai – ficou sendo o seu departamento. Com apenas sete anos, Santos Dumont já guiava os locomóveis da fazenda, e aos doze, se divertia como maquinista das locomotivas.
Contudo, a velocidade realizável em terra não lhe bastava. Cresceu acreditando que poderia voar. Quando diziam a ele que ninguém era capaz disso, ele pensava: “Eu serei!”.
A imaginação do jovem Alberto foi influenciada pelas máquinas mirabolantes dos livros de Jules Verne, autor de clássicos de ficção científica como “A Volta ao Mundo em 80 dias”, “Vinte Mil Léguas Submarinas” e “Viagem ao Centro da Terra”. Os submarinos, transatlânticos, balões e todos os outros meios de transporte que o fértil romancista previu em suas obras exerceram uma profunda impressão em sua mente. Daí nasceu em Santos Dumont o desejo de vencer a força da gravidade e a resistência do ar.
Em 1897, herdeiro de imensa fortuna e independente com 24 anos, Santos Dumont se muda para a França, onde contrata aeronautas profissionais que lhe ensinam a arte da pilotagem dos balões. Sua necessidade tremenda de se descolar do chão fez com que pendurasse a mesa e as cadeiras no teto da sala de sua residência, a dois metros do chão. Os convidados precisavam subir escadas para se sentar, fazendo as refeições como se estivessem em pleno voo.
Apoiou-se na emoção das aventuras que ia costurando em sua imaginação para não ter a menor dúvida de que iria dedicar toda sua vida à construção de aeronaves. Mais que o avião, o legado inspirador de Santos Dumont é sua bravura. Enquanto muitos tentavam voar e fracassavam, ele foi em frente.
Santos Dumont começou por balões dirigíveis com motor a gasolina até construir o 14 Bis, um avião unido a um balão de hidrogênio para reduzir o peso e facilitar a decolagem. Eis que, em 23 de outubro de 1906, realiza o primeiro voo homologado da História, em Paris, nos campos de Bagatelle, por exatos 60 metros e a uma altura entre 2 e 3 metros; um mês depois, por 220 metros e a 6 metros de altitude. “O homem conquistou o ar!”, gritavam as pessoas em terra firme.
No entanto, em 1910, Santos Dumont bateu no teto de suas realizações. Sentia-se cansado demais para continuar competindo com novos inventores nas diversas provas. Resolve encerrar as atividades de sua oficina e retirar-se do convívio social. Ato contínuo, começa a envelhecer na aparência. E exacerba o preconceito velado que se costuma alimentar a respeito do gay que não saiu do armário. No Brasil, o assunto foi tratado como um tabu.
O que o distingue é a paixão pelos instrumentos de precisão, que lhe são de pouca serventia, mas que lá estavam expostos perante seus olhos somente pelo prazer de tê-los como objetos de estimação, como o barômetro, o microscópio do último tipo, um cronômetro de Marinha numa caixa de mogno, um potente telescópio com o qual ele se dava à fantasia de inspecionar o céu. Era notório o seu desconforto a qualquer cerimônia e fausto. Quão rude e constrangedora provação para a sua modéstia comparecer, fosse qual fosse a inauguração, de cartola e sobrecasaca! Ao pé de seu próprio monumento, vestido de herói oficial, sobraçando falta de jeito, um verdadeiro mártir da glória. Difícil ser feliz sem poder assumir sua verdadeira identidade.
Sua insatisfação transmuta-se em amargor com o destino dado à sua criação quando a França foi invadida pelas tropas do império alemão, em agosto de 1914. Era o início da Primeira Guerra Mundial, e aeroplanos começaram a ser usados em combates aéreos, transformando-se em máquinas mortíferas com o uso de metralhadoras e granadas ou bombas lançadas pelas próprias mãos dos pilotos. Santos Dumont viu, de uma hora para a outra, seu sonho virar pesadelo e a se instalar dentro de si uma outra guerra: a guerra de nervos.
Chegou a visitar chefes de Estado para defender que o avião fosse somente usado em missões de paz, não em bombardeios. Não foi ouvido. Nos Estados Unidos já eram produzidos 16 aviões militares por dia. Essa desilusão fez com que o brasileiro desistisse de disputar com os irmãos Wright a primazia pela invenção e, por isso, acabasse menos lembrado que os americanos, hoje considerados como os pais da aviação.
Em janeiro de 1926, apelou à Liga das Nações para que se impedisse a utilização de aviões como armas de guerra. Em 1928, Santos Dumont se abate terrivelmente e vai ao fundo com a queda no mar de um hidroavião, que levava seu nome, ao sobrevoar o navio em que ele retornava ao Brasil, matando engenheiros de projeção que iriam prestar-lhe homenagem. Em junho de 1931, eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, não chega a tomar posse.
Em 9 de julho de 1932, irrompe a Revolução Constitucionalista na qual o estado de São Paulo se levanta contra o governo revolucionário de Getúlio Vargas. Quando lhe surge a visão de aviões de combate sobrevoando Guarujá, depois de bombardearem os insurgentes no Campo de Marte, aeroporto na cidade de São Paulo, com os pilotos usando as mãos para lançar bombas, o que causou uma angústia profunda em Santos Dumont. Levando-o, em 23 de julho, a matar-se de desgosto aos 59 anos de idade.
Por ordens expressas de Getúlio Vargas, tentou-se acobertar o suicídio com os médicos legistas registrando ataque cardíaco como causa mortis no atestado de óbito. Para que não viesse a público que um herói nacional como Santos Dumont tivesse que “sair da vida e entrar para a História” em razão de bombas lançadas sobre as cabeças de irmãos brasileiros, em seu próprio país, e de terem malbaratado a extrema utilidade a que o avião se presta, substituindo-a por um rastro de destruição. Em 1954, 22 anos depois, Getúlio Vargas também se suicidaria, imortalizando a frase “Saio da vida para entrar na História” dirigida a golpistas que, desde 1932, insistiam em removê-lo do poder de qualquer maneira, pois nunca conseguiam vencê-lo em eleições limpas.
De pouco adiantou encobrir o sentimento de desonra com que o suicídio costuma estigmatizar e cobrir de vergonha a família da vítima, dissimulando com um imprevisto ataque do coração, que não deixa sinais – aliás, conduta de praxe ao longo do século XX. O que interessa é a versão das camareiras, que acharam o corpo e relataram que Santos Dumont havia se enforcado com a gravata.