Que analogia se pode fazer entre o futebol negro africano e o brasileiro? Somos gurus e paradigma por conta de um contorcionismo, malabarismo e êxtase no prazer em jogar a bola entre as pernas, que nasceram da mesma mãe. Preferimos dar mais um drible antes de fazer o gol; abusar do toque de calcanhar, da letra e do rabo-de-vaca; dar lençol, de chaleira, sem-pulo, bicicleta com rodas; pentear a bola e equilibrá-la no pescoço, mantê-la colada no peito do pé desafiando o otário desavisado a tirá-la; fingir que vai e não vai; fazer embaixadinha em direção ao gol ou para matar o tempo; empurrar a bola pro fundo das redes de bunda; repousar a chuteira em cima da bola e mirar o gramado e adversários no meio do jogo como se fosse o dono do mundo; adoramos sair jogando e abominamos a bicanca e a bola pro mato que o jogo é de campeonato. Amarelamos tantas vezes quanto for necessário, sem o menor pudor, de pouco valendo a biografia.
A diferença reside na canela mais dura, nos músculos menos propícios a distensões, na propensão a choques escalafobéticos que provocam risadas, nos maratonistas que correm descalços, no ser magro que dói e render que nem uma vaca premiada. Atletas de excelente estirpe num continente onde a fome é abissal e o sertanejo é um forte. Nós preferimos evitar o contato, bater de frente, optamos pela meia-lua, lugar de sexo é na cama, a homofobia é fato, porém, nos toquinhos, totozinhos e firulas não nos incomodamos de oferecer a bunda para proteger e manter a posse de bola.
Não há lugar para pipoqueiros na África se o leão é exaltado nos hinos, tirar o pé nas divididas é sintoma de aculturação. Por outro lado, estamos em vias de extinguir o peladeiro que se foi junto com os terrenos baldios das capitais e periferias. Como esquecer peladeiros de renome, Toninho Cerezo, Mário Sérgio, Júlio César Uri Geller, Neto, felizmente ainda restaram Djalminha, Roger, Denílson. Perdem campeonatos bisonhamente, precisam de uma bola para si e outra para o jogo, só jogam numa faixa de campo ou passeiam em todas, se descontrolam emocionalmente, provocam expulsões bestas, chutam a esmo quando dá na telha, presepada é o lema. Escolha uma ou mais opções acima e marque dentre nigerianos, senegaleses, camaroneses, ganenses.
Somos iguais em se fazer de malandro à campanha contra o fingimento na Copa, capitaneada por dirigentes que viajam sem terem seus vistos negados e mandatos cassados. Cavar pênalti, mostrar falsa indignação contra as decisões do árbitro, fingir-se agredido ou machucado, quem não se enfeita, por si se enjeita, esse é o repertório.
Brasileiros e africanos são artistas e peladeiros que ainda emprestam romantismo à era da blindagem, em que foi fácil ao Brasil assumir mais uma liderança com a nona maior frota de veículos do mundo. Um valioso indicador para aferir o grau de criminalidade, os veículos blindados apenas postergam o enfrentamento com o poder paralelo que chacinou o jornalista Tim Lopes, assim distribuído no gramado: setores esclarecidos da Justiça que se fartam às custas de alvarás de soltura e habeas corpus, conselhos formados por presos recolhidos às penitenciárias, ratazanas bacharéis a soldo, policiais a serviço e tribunais do tráfico, organizados para fazer justiça certeira e rápida, sob o fio da espada samurai, com direito a cremação do corpo em cemitério clandestino chamado microondas.
O Arcanjo reconhecia que já estava “enxugando gelo”, antes de sua microcâmera flagrar o aliciamento de meninas menores de idade em bailes funk. Harém e feudos se complementam na ebulição do caldo de uma cultura obrigada a despir da fantasia e forjar uma nova identidade, onde a figura de vencedor e fracassado não estigmatize a sociedade.