4 horas da manhã o telefone toca inúmeras vezes até Salviano se dar conta de que sua idosa mãe ainda não morreu e é de bom tom acordar para cuspir e atender uma mulher passando uma descompostura de cabo a rabo:
– Xavier, isso é coisa que se faça? Você foi embora sem ao menos se despedir de minha família me deixando numa situação vexatória com cara de tacho. Com que cara eu iria explicar para eles o que está acontecendo entre nós? Que você nunca está satisfeito a meu lado, isso eles já sabem. Você é muito frio, calculista e insensível. Você quer uma mulher, eu quero é o amor. Seu coração está velho, cada vez mais se distancia daquilo com que sempre sonhou. Perdeu a naturalidade de amar com arrebatamento, sem pensar em mais nada. Foge do prazer com medo de assumir responsabilidades. O que é que você está pensando que eu sou, mulher de grudar em homem, hein? Se aparentemente somos mais malvadas, nós mulheres, é porque somos sacaneadas. Você faça-me o favor de nunca mais me procurar. Amanhã mesmo deixo na sua portaria uma mala com seus pertences e bugigangas. Não ouse me telefonar, não quero vê-lo nunca mais! Não pensarei mais em você, não deixarei mais me inquietar por você, não terá do que se arrepender nem responsabilidade alguma. Você obteve tudo o que queria de mim, e vocês homens, se desinteressam de tudo aquilo que conseguem conquistar. Rechaçam o afetivo, o carinho incondicional. Viu? Ouviu? Alô, alô…
Por inércia, Salviano desliga o telefone, mas o redial aciona o ringue em 3 segundos:
– Xavier, quem te mandou desligar o telefone? Eu não gosto de na hora em que estou falando, que batam o telefone na minha cara. Você não faz nada para me agradar nem alegrar, deixou de dizer que me ama faz séculos. Não arde mais em mim a emoção que senti quando o vi pela primeira vez. Você sugou o que eu tinha de mais belo! Você é um urso condenado à hibernação, não acha nenhum lugar para onde ir. Seu coração ficou tão seco que ficar ao seu lado é ficar louca. Eu já sei coisas demais a seu respeito, era melhor que não soubesse de nada, senão irei descer aos infernos com um demônio como você! Por que você não diz nada, se vocês, ao menor sofrimento, urram de dor? Quem cala, consente. Você sabe que não tem nada que possa dizer em sua defesa, não é? Faça-me o favor de nunca mais me procurar. Não ouse me telefonar, não quero vê-lo nunca mais! Você está me ouvindo? Você está me ouvindo?
Salviano não era Xavier, não respondeu com uma palavra sequer, nem grunhiu. Ainda bem que não era com ele, podia ser com ele, a tudo ouviu com sono e com uma culpa que quase o levou a assumir e desculpar-se de pronto, porque é sádico. Aliás, o marquês ainda está presente para lembrar que podia ser com qualquer homem, a culpa está registrada em cartório.