(Publicado no Jornal das Gravadoras de Setembro)
Se o quanto não bastasse o que Chiquinha Gonzaga fez por essas mulheres, ela ainda escondeu no filho seu verdadeiro amor, seria por demais hercúleo enfrentar filhas, pai e sociedade.
A heroína Chiquinha só faltou cantar, mas abriu as portas do cancioneiro popular, na era do telefone, para as cantoras do rádio, e logo a primeira nos foi afanada por Hollywood e devolvida depois de devidamente sugada, por não termos dado ouvidos ao “taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim”. Não permitiram que a luz de Carmen Miranda nos guiasse, mas seu carnaval de cores pintou a estética do tropicalismo que fizeram o mundo gay gargalhar à vontade da platéia atônita.
O caminho ficou livre para “Chiquita bacana, lá da Martinica”, Emilinha e Marlene se digladiavam na arena da Rádio Nacional, Ângela Maria já convocava Cauby Peixoto ululando “Babalu”, Linda e Dircinha Batista atraíam as atenções de Getúlio Vargas, enquanto Nelson Gonçalves desfiava Adelino Moreira na boneca de trapo, meu vício é você, pedaço de vida que vive perdida no mundo a rolar, farrapo de gente e inconsciente, peca só por prazer, boneca eu te quero, com todos os vícios, com tudo afinal, eu quero esse corpo que a plebe deseja, embora seja prenúncio do mal.
Foi o que bastou para Dolores Duran não ver outra saída para a mulher e aceitar a bandeira da rejeição nas músicas de Antônio Maria em “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama, de meu amor, a vida passa, e eu sem ninguém” e a fracassomania de “cansaço da vida, cansaço de mim, velhice chegando e eu chegando ao fim”.
Quem canta, seus males espanta. As letras das músicas não necessariamente refletem o que passa pela glote de quem bebe e compõe, afirma com ar de entendido quem passou pela vida em branco e já entregou os pontos.
Mas a lua atravessava o céu de zinco e salpicava o chão de estrelas dos morros onde era sempre feriado nacional, e fez surgir a Divina, Elizeth Cardoso, num palco iluminado, vestida de dourado, alimentando as perdidas ilusões de Jacob do Bandolim nas “Noites Cariocas” e Ciro Monteiro tamborilando sua indefectível caixa de fósforos, no fundo do quintal.
Indubitavelmente, as cantoras brasileiras, em todos os gêneros, são o que há de melhor no mundo. Mania de grandeza, ferroada do argentino. Elis Regina entre Sarah Vaughan e Barbra Streisand. Ela não se conformou com o bel far-niente do “Barquinho” de Ronaldo Bôscoli e se transformou na nossa diva e de César Camargo Mariano no “Falso brilhante”, em que “amor é um disparate, me faz pintar os cabelos, dobrar os joelhos, mesmo diante do canto do cisne, me dá forças para o grito de carnaval”.
Maria Bethânia, Gal Costa, Nana Caymmi, Rita Lee, libertam a mulher do invólucro que as encerrava, despachando a fragilidade, toque perverso incutido na sua formação, para os quintos do inferno. Sob as bênçãos da guerreira Clara Nunes, morena d’Angola, em seu candomblé rítmico. Ê baiana, a rainha do partido-alto da “Portela na Avenida”, saravá meu pai, e “o mar serenou”.
Não se sacrificou à toa, “bem que se quis” Marisa Monte para tirar a Velha Guarda da Portela do fundo do baú assim como outros esquecidos na rala memória da Aquarela do Brasil. “O que é que a gente não faz por amor?”, “a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte”, a liberdade de cantar composições de escolas e gerações completamente diferentes entre si, unidas pela qualidade musical e poética, firmando o bello canto brasileiro, aberto e libertário.
“Eu perco o chão, não acho as palavras, eu estou no meio, mas chego no fim, tenho por princípios nunca fechar portas, para mim estrelas são estrelas, para mim”, Adriana Calcanhoto não gosta de sinal fechado e compôs um hino que supera a Cidade Maravilhosa. “Cariocas” são bonitos, sacanas, dourados, espertos, diretos e, no gogó, com sotaque, não gostam de dias nublados.
Mulheres cantando, preferência nacional, e não é por estarem falando mais grosso com os homens, é porque conseguiram virar a página do século e agora suas vozes finalmente estão sendo ouvidas.