A obra “Quéreas e Calírroe” de Cáriton de Afrodíasas se encontra entre os primeiros romances escritos no Ocidente, oriundo de um pedaço do mundo entre Europa e Ásia, onde hoje fica a Turquia, e anteriormente a Cária. Datado do século I d.C., seu autor é desconhecido, assim como tantos outros da Antiguidade.
É uma história de amor em Siracusa em torno de Calírroe, que tem sua beleza comparada à de Afrodite. Ela se apaixona por Quéreas, comparado a heróis como Aquiles. Embora haja uma rixa política entre suas famílias, o povo intercede pelo casal e o casamento se consolida, sujeito a uma série de infortúnios numa menção à deusa Fortuna.
O destaque à personagem feminina refletiria uma mudança na sociedade em que as mulheres passam a ter maior visibilidade e acesso à educação, principalmente no contexto romano, ainda que se tratasse de uma sociedade patriarcal.
E é essa sociedade que vem à tona no romance, quando o destino de Calírroe fica à mercê das vontades e interesses de vários homens: pai, marido, amante, rei. Quéreas, depois de desposar a amada, passa a sofrer de crises de ciúmes, até que acerta um pé direto no diafragma dela, que a faz perder a respiração.
O povo, acreditando que ela estivesse morta, a enterra viva. Quéreas, a exemplo de como outros agressores reagiriam no futuro da Humanidade, se arrepende e tenta pôr fim à própria vida, mas é impedido por amigos. Posteriormente, ele veio a descobrir que ela estava viva e que fora sequestrada de sua tumba por piratas. Resolve partir, então, em busca de Calírroe, que já vivia em outro país.
Grávida de Quéreas, a heroína se torna esposa de Dionísio, homem rico, bom e protetor, que pensa ser o pai da criança que ela carrega no ventre. Embora, em momento algum, Calírroe tenha deixado de amar Quéreas. Situação que necessitou da intervenção do rei na trama, cheia de fios narrativos, para decidir com quem Calírroe deveria ficar, se com seu benfeitor ou com seu primeiro marido.
O povo se dividiu entre os que torciam por Quéreas ou por Dionísio. O que seria dela se Quéreas tivesse outro acesso de raiva? Outra vez a sepultura? Quéreas se defendeu alegando que é um sentimento típico de quem ama, pedindo para não guardarem rancor pelo chute impiedoso desferido.
Agressão conjugal que viria a se repetir incessantemente desde o século I d.C., no mínimo. Além da mulher bela, disputada por vários homens, que costumam falar por ela, e que só têm olhos para sua beleza, e pouco para o seu caráter, o seu interior. Um clássico na vida real, ainda hoje.
Um sinal de que, nesse particular, quase nada evoluímos, ainda apegados à possessividade, exclusividade, a atropelar como bem entender a autonomia da mulher e principalmente o homem não aceitar ser abandonado ou largado ou jogado fora. O contrário, pode. Ou melhor, podia. Entre o pode e o podia, a agressão e o feminicídio foram se assenhoreando da situação.