O Rio de Janeiro é a cidade que Deus elegeu para reinar sobre o mundo. Incógnito. Como escolher qual praia irá lavar Seus pés ou em que trilha da Floresta da Tijuca irá se achar? Se mirar na Lagoa enquanto figuras bissextas procuram o Sobrenatural em Santa Teresa. Xingam o calor para deliciar-se com o chope e, ao menor sinal de frio, riem das mulheres de casaco de couro e bota. Só sendo carioca para compensar com bom humor os impensáveis problemas que Pero Vaz de Caminha não atinou quando seu queixo caiu diante das índias. Logo se mandou rezar uma missa em homenagem ao espírito agradável que dilui seus defeitos e os torna até atraentes.
Na maior intimidade, todos se tocam, se abraçam, cochicham banalidades, sem se conhecerem. Se entreolham, escolhem-se e se misturam, sob o abano de palmeiras, na esperança da cocada, branca ou preta, fazer surgir o cravo e a rosa de uma democracia miscigenada e sensual que adora se aglomerar em botequins de esquina nas sextas sem lei. Libertos da neurose de se isolar, de não ouvir gracinhas e se respeitar, criando a muvuca, uma rede de quilombos destinada ao exercício de azarar.
Começou nas praias, quando perguntaram à Maria Chiquinha o que ela foi fazer no mato. Se estendeu à Lapa, onde prestaram enorme contribuição capoeiristas, travestis, putas, malandros, ricaços e madames de cabarés e bordéis, eméritos dançarinos que disputavam a bolinha da sorte para encontrar o amor na calada da noite.
Como de noite todos os gatos são pardos, surgiu a feijoada para excitar a aproximação de quem é quem travestidos de falsa elegância. Jogadores de futebol, modelos, atores, músicos, escritores, jornalistas, separados em convalescença, enjeitados, bicões, esquisitos e chatos dividem o mesmo espaço na promiscuidade da fama, sob o som do pagode que promove a ligadura.
Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Ai, que coisa mais linda, mais cheia de graça. O contraste entre as montanhas e o mar. Jamais se viu contornos tão majestosos em harmonia com cores que alternam o foco da beleza. Só pode ter sido obra e arte de criança, ao colocar o dedo na tinta e desenhar a sinuosidade dos morros.
Se Deus mostrou-se obcecado ao pintar a aquarela do Rio de Janeiro, pode perfeitamente ter um ataque de prima donna. Cansou-se das inúmeras experiências a que o carioca submeteu o Rio de Janeiro. É bem verdade que Deus faz chover, mas não para provocar deslizamentos em favelas. Tampouco imundície jogada nas praias ou peixes mortos na Lagoa. Se furar túneis congestiona o tráfego e abrir linhas expressas desenvolve o tráfico, que progresso é esse onde bandidos pretendem impor respeito à cidade?
A lei do mais forte, por não agüentarem ser mais excluídos na cidade de Deus. Atingindo o ponto nevrálgico de cidadãos respeitáveis, politicamente incorretos. Com a droga. Tirando do sério a população com o toque de recolher imposto naturalmente. Para quem gozava da fama de levar a vida na brincadeira, que droga não poder banhar-se em córregos e cascatas nas florestas que preservam a nossa intimidade. Sabe-se lá o que irá sair do mato, o que representa uma morte a mais ou a menos, se é tão fácil procriar e nascer?
A paciência de Deus esgotou-se. Antes que a Baía da Guanabara se transformasse num mar de óleo que, ao menor riscar de um palito de fósforo, esturricasse sardinhas e manjubinhas. Abalando a verdadeira vocação do Rio de Janeiro de coexistir com siris entre manguezais, de pensar que aprendera a conviver com suas diferenças étnicas a caminho da miscigenação. Minimizamos disputas ideológicas e de credo, julgávamos que a cordialidade advinda de nossas raízes brasileiras harmonizasse no carnaval toda e qualquer forma livre de pensamento, ao rodar as baianas no repenique de tamborins. Nesse ritmo, o tarol excitava no ronco de cuícas que abafavam o surdo do bumbo anunciando o iminente fracasso a que homem e mulher estavam fadados na Cidade Maravilhosa. O caos reinante tornou-os incompatíveis para construir uma relação de amor.
Deus perdeu os escrúpulos e resolveu fazer uso de seus poderes para intervir na desordem que se instaurou no seio da família. Solidão não combina com casas dentro de casas, na medida em que cada um se encerra em seu quarto com seu high-tech particular. Dependendo do gênero, deprê ou de euforia absoluta, o quarto se transforma numa fortaleza ou cárcere.
Deus abriu mão dos anjos e agiu de corpo presente, ao perceber chagas em pessoas divertidas que alardeiam a alegria da vida, causadas por amigos que não eram anjos. Ao fazerem mau uso do carinho de quem lhes dedicou afeto integral. Apenas por se mostrarem atiradas com seus olhos sinceros – preciosidades raras que repentinamente desembarcam e se alojam num recanto especial de nossa existência. Basta olhar de relance, já sabemos a que vieram. As mulheres. Deus as pôs de índias, com penacho e tanga, pintadas para a guerra.
Aqueles cujas qualidades se encontram retidas para averiguações, necessitando serem desvendadas aos poucos, Deus mandou-os despir-se, Darcy Ribeiro o inspirava. Desnudar o homem por completo. Com uma flauta na mão. Atrás do som do uirapuru. Enquanto Gaspar embrenhava-se na Mata Atlântica, levado pelas mãos dela.
Maiara, a índia tupi. Sabe exatamente o que fazer para obter êxito em sua empreitada, devido à força de vontade e perspicácia que Deus lhe confiou. Uma mulher maiúscula capaz de se ligar a um mesmo homem por toda sua vida. Sem se casar com o casamento nem se acomodar nos louros da família, submissa ao poder do amor. Não veio para reeditar o Paraíso nem corrigir erros na gênese, mas para coabitar num Rio de Janeiro sem vivalma, desvinculando-se da noção de tempo. Com a incumbência de modificar as leis da sobrevivência e na interferência que causa no amor. A caça não seria atributo exclusivo do homem; nem o culto à beleza, da mulher.
O lar sempre representou uma idéia distante para Gaspar. Desde os seus antepassados portugueses. Sua preocupação permanente era manter-se nutrido por idéias alienígenas e a salvo de intrusos que quisessem entrar na sua intimidade. Gostava de ousar sobrevoando os escombros do Maracanã em sua asa voadora, alvo da sanha de torcedores inconformados com derrotas.
Desapareceram garantias, amigos, situação e família. Gaspar aprendeu a colher nas perdas. No fracasso, o espantalho da espécie masculina. Originado na criação. Sua infância, a babá preparando seu mingau e a mãe na cadeira de balanço pondo-o para dormir.
Maiara se especializou em experimentos com verduras, legumes e frutas, de forma que a digestão não atrapalhasse o espírito da coisa. Havia que se criar um relacionamento suculento, vitaminado e duradouro. Acabou por descobrir uma terra verde que, em contato com o ar da Floresta da Tijuca, expele um aroma que impregna o ambiente e fez Gaspar se dirigir a tudo que tinha medo de reconhecer o que tanto queria.
Ambos começam a plantar, desbelotando o solo por onde enfiavam sementes na terra verde. Somente cavando o solo e mexendo com a terra é que Gaspar criou coragem para amar de novo e procriar. Procriar muito, afinal aquele subsolo já fora leito de filhos e conhecera o selvagem do amor, que findou soterrado. Assustado com a perda do céu onde só a imaginação se perdia, aninhou-se nos braços de Maiara e, ainda como filho, fez da mãe sua mulher.
Gaspar se desobriga da responsabilidade de ser forte, corajoso, empreendedor, sem enfraquecê-lo. Um milagre! Maiara testa os novos alimentos que prolongariam a vida, equilibrariam o apetite e a temperatura do corpo, estimulariam os sonhos e elevariam às alturas a capacidade de ânimo e esperança. Erguendo um dique contra as doenças. Com a melhor das intenções: retirar Gaspar da condição de filho, convertê-lo num homem de verdade.
Finalmente, Gaspar conseguira espantar o medo de reconhecer o que tanto quis e deixava escapar pelos anéis de Saturno, iludido com a Via Láctea. Maiara despede-se do mito, deixando no ar se é obra de ficção ou fraude em carne e osso. Resolve não mais se enfiar em histórias onde é requisitada. Deixa de ser um espírito que cicatriza feridas e cura doenças terminais, para se humanizar e viver uma grande história de amor. Ela é filha de Deus, mas não tem vocação para Cristo.
Fez-se a luz, o Rio de Janeiro é a Terra da Promissão, uma salada em que a maçã do pecado virou suco.
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