Tillie Horman é uma americana de 64 anos que foi apanhar a sobrinha russa no aeroporto e passou três dias de cabeça para baixo. Presa ao cinto de segurança depois que seu carro se projetou num abismo e ficou escondido na vegetação de um manguezal. Sem nenhum osso quebrado e muitas picadas de mosquito, nunca ninguém descobrira que ela sempre foi uma ave desgarrada que fazia o macho cair em desespero para arrancar dela uma declaração de qual importância ele tem na sua afetividade. Porque ora ela o procura para cruzar, como se o cio fosse o tempo de consulta de um psicanalista, e ora tomam seu lugar os cuidados com a aparência e as inúmeras técnicas de rejuvenescimento.
Claro que Tillie não poderia revelar o segredo desse descompromisso. Pendurada como no pau-de-arara, no meio do matagal, viu o reino animal desfilar à sua frente e a promiscuidade que nele campeia. Durante séculos, pensadores cristãos juraram que as fêmeas eram sexualmente monógamas. Acreditaram mais na Bíblia do que em observar a viúva-negra australiana, que devora o macho após o coito, recurso extremo para garantir a perpetuação de sua herança genética, mantendo-a ocupada na mastigação e evitando a aproximação de concorrentes. Volúvel demais, assédio é bom e ela gosta. Cachorros e moscas varejeiras prolongam o instante feliz para evitar que a parceira se entregue a um rival. Os caranguejos do tipo maria-farinha produzem uma secreção que endurece como cimento, bloqueando a passagem do esperma inimigo. O pênis da libélula remove o sêmen de outros que já andaram por ali antes. A desculpa de que a promiscuidade desenvolve mais os órgãos sexuais dos machos não serve de consolo. Nós, leões, temos por hábito matar os filhotes que ela teve com outros felinos.
Ao querer se radicar nos Estados Unidos, Svetlana chega e não encontra sua tia no aeroporto. Para não ficar nervosa, se deixa adormecer na poltrona ao som da música I Wish I Were in Love Again, cantada no rádio por Frank Sinatra: “as noites sem dormir, os dias difíceis, sinto falta dos beijos, e das mordidas, o adorável amor, e o detestável ódio, com os pratos voando, chega de dor, agora estou curado, do arranca-rabo entre cão e gato, eu aprendi minha lição, mas preferia estar nocauteado, amarei você até o dia que morrer, decepcionado por acreditar em mentiras, a traição – que remédio! -, o que mais prefiro é a clássica batalha, eu não quero paz”.
A léguas de Tillie e a milhares de milhas da Rússia, Svetlana decidiu virar a página no dia em que o submarino nuclear afunda e enterra 118 tripulantes vivos. No sagrado dia em que a Igreja Ortodoxa Russa decidiu canonizar o último czar Nicolau II e sua família, fuzilados em 1918, depois de mantidos em prisão domiciliar durante um ano pelos bolcheviques. Para coroar a celebração de dois mil anos do nascimento de Jesus Cristo e o soerguimento de uma catedral do século XIX demolida pelos comunistas. Um desagravo aos sofrimentos padecidos pela família imperial no cativeiro, à humildade e à resignação cristã com que aceitaram o martírio, enfim, a vitória da fé de Cristo sobre o mal. O mesmo mal que grassava na corte czarista imersa em guerras fronteiriças face ao tamanho desmedido adotado pelo império, que causou fome e depauperamento, necessitando que a guarda imperial abrisse fogo contra milhares de famintos que queriam invadir o palácio e chamar às falas o czar escondido debaixo das saias de Rasputin, o salvador da pátria.
Só de cabeça pra baixo para entender melhor o que se passa debaixo dos panos, o sabor do repasto nupcial para a viúva-negra, e a insistência irritante de Frank Sinatra em querer que nos apaixonemos de novo.