Filha única de uma abastada família judia de Berlim, a pintora Charlotte Salomon nasceu em 1917 para dar curso a uma existência pontuada por uma sucessão de suicídios e tragédias em seu círculo familiar. A primeira delas, quando ainda não havia nascido, foi a tia de Charlotte, irmã de sua mãe e que também tinha seu nome, que se suicidou. Progressivamente, foi diminuindo o ritmo de suas atividades em geral como comer, andar, estudar. Uma melancolia infiltrou-se em seu corpo. Acabara de completar 18 anos, quando se levantou, enquanto todos dormiam, para ir em direção ao seu destino. Uma ponte da qual pulou, caindo na água gelada, tornando sua morte um martírio. Matou-se sem a menor explicação, sem fazer alarde; a irmã considerou esse suicídio uma afronta à união delas.
Sua mãe Franziska quis chamá-la de Charlotte em homenagem à irmã falecida. Seu marido não concordou em manter a memória viva, logo de uma suicida. Franziska nunca se conformou com o desaparecimento trágico de sua irmã, de tal modo que entabulou um teatro para adaptar sua filha à realidade, à medida que ela ia crescendo: “Foi um acidente, sua tia se afogou, ela não sabia nadar”. O teatro sofreria um revés se não fosse o marido arrombar a porta do banheiro e trazê-la de volta à vida, quando ela também tentou o suicídio ingerindo todo o conteúdo de um frasco de ópio – a partir de agora, se ficasse sozinha, ela se mataria. Voltou para o seu quarto de solteira, cenário de sua infância, o lugar onde havia sido feliz com a irmã na casa dos pais. Chamaram um neurologista, foi uma pequena crise passageira, apenas excesso de emoção e forte sensibilidade, nada mais. O diagnóstico pouco acrescentou – atirou-se pela janela do quarto.
Aos 8 anos, Charlotte ficou com uma raiva terrível da mãe, que a acostumara a contar tudo. Agora precisaria aprender o que era solidão, não dividiria seus sentimentos com mais ninguém. Adquiriu o medo de ser abandonada, melhor seria evitar se relacionar e viver a salvo das possíveis decepções, refugiando-se na introspecção.
O judaísmo pouco tivera importância na família de Charlotte, sem nenhuma orientação específica, até chegar o apogeu da dominação alemã e cruzar com os Albert Einstein e Schweitzer em sua nova casa em que seu pai foi morar, em segunda núpcia, com uma cantora lírica famosa em toda a Europa.
Forçoso revelar que sua vida foi estruturada em cima de uma grande mentira, nada lhe sendo informado a respeito de uma longa linhagem de suicidas na família. Sua avó, além de perder suas duas filhas para o suicídio, tivera o seu irmão tragado pelo mesmo destino de também se jogar no rio por causa de um casamento infeliz. A bisavó de Charlotte, mãe do doutor em Direito de 28 anos, afundou na demência, tendo que ser vigiada e protegida de si mesma, sucumbindo após 8 anos de esgotamento mental.
Mas para a avó de Charlotte ainda não havia terminado. Assim que sua mãe fora enterrada, sua irmã mais nova, de 18 anos, de maneira imprevisível, se levantou no meio da noite para igualmente se lançar num rio gélido, exatamente como faria mais tarde a primeira Charlotte. Com o suicídio se repetindo sem cessar à filha única de seu irmão que se suicidou, prossegue com o seu tio, que se lançou da janela, seu pai, o bisavô de Charlotte, e seu sobrinho, quando impedido de trabalhar pelos nazistas. As raízes de uma árvore genealógica corroídas por um mal desconhecido.
Enclausurada em seu quarto, a avó continuava a chorar os seus mortos. Era preciso tomar cuidado e proteger Charlotte, que devia viver, não mais lá indo dormir. Seria possível preservar sua vida?
Era o ano de 1933. A plateia gritava horrores e insultos nas apresentações líricas da madrasta; amigos de seu pai, cirurgião e professor conceituado, o incitavam a sair da Alemanha. Mas como? Se aqui é a nossa pátria! Logo seriam impedidos de trabalhar. Charlotte assistia a toda uma nação com sede de violência organizar o boicote aos bens judeus e aos saques às lojas. Algumas meninas descobriam ter ascendência judaica com a certidão de nascimento dos avós exigida nas escolas, imediatamente passando para o lugar de banidas, com mães proibindo as filhas de frequentar a casa de judeus.
Charlotte se fechava cada vez mais, não cessando de ler Goethe, Hess e Nietzsche, quando o desenho ingressou em seu horizonte e a paixão pela Renascença levou-a a questionar se não seria melhor, em suas andanças pelos museus, conhecer um único quadro em sua perfeição do que fragmentar o olhar por entre outras pinturas e acabar por perdê-lo. Queria muito se fixar em algum lugar e não ter de buscar o que não encontrava. Sonhava fazer Belas-Artes, mas uma imensa bandeira nazista tremulava no alto do edifício-sede. Não pôde nem concluir o ensino médio, proibida de continuar os estudos. Desistiu de tentar decidir como conduzir sua própria vida.
Bem a propósito, pois surgiu um grande acontecimento na vida de Charlotte: o revolucionário professor de canto de sua madrasta. Lutara a 1ª Guerra Mundial, conhecera o medo, a impossibilidade de voltar atrás, senão o desertor era fuzilado – a paisagem, uma vasta desolação. Repatriado, ficou um ano sem reconhecer ninguém até que, de repente, do coração das trevas, escapou do caos ao soar uma melodia, que começou a cantarolar baixinho – o renascimento de sua voz a perpetuar que música e vida estão umbilicalmente ligadas. Foi assim que se lançou ao canto, como pessoas se jogam em rios gelados para morrer.
Alfred pôs-se a examinar os esboços de Charlotte, terminada a aula de canto: um talento acima da média. Ingênuos, aproximativos, inconclusos, esboço de uma loucura sensata e polida. Sua vida estava entre parênteses, fácil Charlotte tornar-se submissa ao seu olhar e poder de observação. Queria ser livre, qualquer improvisação era proibida se, passando por um ponto de controle, estaria sujeita a espancamento, tortura e estupro, senão desaparecimento. Se perdidos no beijo nem escutaram o trovão, tampouco Charlotte se assustou com a hegemonia de Alfred nos movimentos, a eles se entregando com mais força ainda, a jovem nua e oferecida, precocemente fustigada pela vida.
A pintura se tornara uma obsessão, descobrira Chagall, admirava Van Gogh e Munch, ilustrava o romance de Alfred, iria tentar o concurso para a Academia de Belas-Artes de Berlim a qualquer preço. Agora, sabia aonde ir, em 1938. O concurso era anônimo e, depois que as obras eram premiadas, se dizia o nome dos autores. Pela primeira vez, a escolha foi rápida. Impossível reconhecer o traçado do aluno vencedor que, de tão genial, embaralhara as pistas. Tiveram de abrir o envelope com a identificação. Um constrangimento geral se espalhou, acusariam a escola de tender para a rotulada arte degenerada do judaísmo e Charlotte Salomon ficaria muito exposta, virando um alvo e correndo o risco de ser presa. Um dia extremamente injusto para ela, que venceu, mas não levou o troféu, transferindo a glória para uma amiga loura ariana que, sem demonstrar embaraço, acreditava mesmo ter sido a ganhadora.
A Noite de Cristais, de 9 para 10 de novembro de 1938. Cemitérios profanados, lojas depredadas, mercadorias saqueadas, surras, milhares de homens levados para campos de concentração sem saber por que e por quanto tempo, de pé no frio durante horas, esperando serem interrogados – dentre eles, o pai de Charlotte. Idosos e doentes que não resistiam e caíam eram abatidos no pátio dos fundos. Charlotte tinha que ser tirada da Alemanha, o quanto antes, não havia mais tempo a perder. A despeito dela não querer deixar o pai, o túmulo da mãe, suas lembranças, sua infância e Alfred, seu grande e único amor, que lhe sussurrou: “não se esqueça de que acredito em você”.
Em janeiro de 1939, foi ao encontro dos avós, que se refugiaram em Villefranche-sur-Mer, no sul da França. Fazia muito tempo que não se viam, ela era uma adolescente. Pareceu-lhes idêntica à mãe, possuindo em comum a melancolia e a tristeza. A avó sentia dificuldade para respirar, há anos lutava para permanecer viva, a rigor, desde a morte das filhas. Não parava de praguejar contra a guerra que destruiria tudo, o mundo iria pegar fogo, não queria mais viver, já era chegada a hora de se reunir às filhas. Necessário vigiá-la o tempo todo, nunca deixá-la sozinha. Charlotte compreendeu que esse papel lhe cabia, havia um preço para o refúgio.
Uma carta de seu pai, desembarcado na Holanda, largando seus bens e haveres para trás, com a sensação de um criminoso temendo ser detido ou executado, faz ela se perguntar se sobreviver assim vale a pena. A carta descontrola sua avó, que grita aos quatro cantos que todos irão morrer em breve! A morte está em toda a parte! E tenta o suicídio na ponta de uma corda no banheiro, que resultou em vão. O avô de Charlotte se exaspera e reclama de sua mulher não ter o direito de morrer e abandoná-lo à própria sorte: “o que vai ser de mim?”. E surta num monólogo demente historiando os suicídios na família.
Até chegar na mãe de Charlotte, revelando o segredo guardado a sete chaves: “Ela se jogou da janela de nossa casa, está me ouvindo?! Você me dava pena. Eu bem me lembro de seu rosto, sempre esperando que sua mãe voltasse, buscando-a no céu, pois ela lhe havia dito que se transformaria num anjo”. Charlotte saiu correndo em direção ao mar. Por que ninguém lhe havia contado nada? Entrou na água fria de fevereiro, vestida. Os joelhos, a cintura e os ombros logo foram encobertos pelas ondas, ela não sabia nadar bem. As roupas molhadas ficaram pesadas, poderiam arrastá-la para o fundo. Com medo, desistiu do intento.
Toda sua vida apoiada numa mentira, todos a traíram, “eu os odeio!”. Todo mundo sabia da verdade, “todos, exceto eu!”. Nunca havia desconfiado. Por outro lado, compreendera a estranheza que sempre se apossava dela. O pavor de ser abandonada, a certeza de todos a rejeitarem, a baixa autoestima, a mediocridade tomando conta de si.
Na madrugada que se seguiu, ouve-se um baque do corpo da avó de Charlotte no pátio da moradia da família – a potencial assassina de si mesma. A morte em três idades diferentes: a avó, a mãe de Charlotte e a jovem tia que Charlotte não conheceu. Na sua família nenhuma mulher havia escapado do destino mórbido. Mas só se falava da invasão alemã e da inexistente reação do Estado francês, que decide prender os refugiados alemães em seu território, depois de exigir que se cadastrassem. Os nazistas controlavam o país para onde Charlotte havia fugido. O país-refúgio onde ela seria presa. Jamais haveria um fim para a sua errância.
Em junho de 1940, Charlotte e o avô se viram num trem em direção a um campo de concentração em Pirineus. Hannah Arendt estava lá. Todas as noites, ouviam-se os guinchos de ratos circulando por entre colchões amontoados e rostos adormecidos. Mas o pior era o guarda do alojamento, que abria a porta, cegando as mulheres deitadas com sua lanterna, buscando uma para violentar, em ritual demorado para excitá-lo com o medo que as fazia se encolher. O desespero de Charlotte nos cuidados com o avô, terrivelmente magro e prostrado num catre a maior parte do tempo, no fim de suas forças, convenceu a Administração a soltá-los. Tiveram de atravessar os Pirineus a pé, os transportes públicos deixaram de funcionar.
No trajeto de retorno a Nice, fizeram uma parada num albergue em que só havia uma cama no quarto. O avô insistiu para que dormissem juntos – neta e avô, considerado normal. Todavia, ele a incitou a tirar a roupa e a encostar-se nele, dando vazão a um instinto animal que não punha em prática quase uma existência inteira. Ela saiu para tomar ar e só voltou quando ele engrenou no sono. Sentou-se num canto e escondeu o rosto nos joelhos. Sabia, melhor que ninguém, ocultar a dor, acostumada que estava com a sucessão de sofrimentos.
Para pegar no sono, percorreu suas lembranças, único lugar onde morava a ternura, sentindo o beijo de Alfred e entrando em contato com a beleza para recompor com precisão um quadro de Chagall, visualizando cada detalhe. Sua relação com o mundo se tornara puramente estética, sem cessar pintava quadros em sua cabeça, sua obra já pulsava em sua imaginação. Com a epígrafe escolhida: “A verdadeira medida da vida é a lembrança”, de Walter Benjamin – de quem Charlotte gostava imensamente, e que veio a se suicidar, envenenando-se com morfina, pouco tempo depois, ali perto nos Pirineus, por não suportar mais a perseguição nazista.
“Charlotte, você deve pintar. Confio no seu talento. Desanimar está fora de cogitação. Se estiver sofrendo, deve expressar esse sofrimento. Sua beleza interior é de tal tamanho que tens de compartilhá-la.” Eis que aparece o rosto de Alfred como uma visão, mais vivaz do que nunca, prosseguindo: “Você deve viver para criar, pintar para não enlouquecer” – como pudera esquecer de suas últimas palavras na plataforma do trem?
Naquele dia, nascera sua obra Vida? Ou Teatro?. Para sobreviver, deveria pintar sua história. Era a única saída: fazer com que os seus mortos ganhassem vida. É o caminho que seguem todos os artistas. Através de um túnel impreciso de anos, que enfim os conduz à revelação e à compreensão daquilo que já suspeitavam: considerar a arte como a única possibilidade de vida. Ela, que queria morrer, começou a sorrir. Suas mãos não hesitavam mais. Sabia exatamente o que devia fazer. Em guache e aquarela, iria pintar suas lembranças de forma romanesca. Os desenhos seriam acompanhados de longos textos. Pintar e escrever. Era uma história que se podia ler, tanto quanto se olhar. Com os desenhos e o relato, ela acrescentou indicações musicais. A trilha sonora de sua obra. Viajava-se com Bach, Mahler e Schubert, ou canções populares alemãs. Para formar um estilo singular e inédito, uma maneira de se expressar por completo.
Um círculo do qual seu avô não fazia parte. Charlotte pintava cantarolando, consagrando dias e noites à união intuitiva dos sentidos. A música guiava sua escolha de cores. Vida? Ou Teatro? era uma conversa entre as sensações. A pintura, as palavras e a música, também. Arte fusion, necessária para a cicatrização de uma vida destruída.
Corria o verão de 1942, diziam que em Paris teria havido uma prisão em massa de judeus. Quem lá sabia o que se passava na Alemanha ou na Polônia? Quem sabia realmente da verdade? Nunca mais teria notícias do pai e da madrasta? Alfred seria muito inapto à vida para se safar? Invadida pela urgência, Charlotte desenhava e escrevia num frenesi perturbador, antes que fosse tarde demais. Seu traço foi ficando ainda mais enérgico, inúmeras páginas só comportando textos – era preciso contar a história de sua família.
Charlotte põe um fim em sua obra autobiográfica, escrita em condições totalmente adversas, se desenhando de frente para o mar e de costas para nós, como que antevendo seu grand finale. Tinha de proteger seu trabalho a qualquer custo, guardando-o num lugar seguro, no caso dela ter de fugir ou mesmo vir a morrer. Acondicionou-o numa mala e depositou em mãos confiáveis que iriam para os Estados Unidos.
Seu avô morreu na rua de uma dor aguda no coração, defronte a uma farmácia. Charlotte se viu livre de um peso com seu mau humor frequente e desprezo pelo seu trabalho, recomendando-a para não se esquecer da linhagem da família Grunwald e se casar com alguém da sua categoria, típico de uma educação burguesa que a 2ª Guerra Mundial trataria de destruir.
Em novembro de 1942, a Alemanha invade o resto da França e dois refugiados unem seus temores. Charlotte considerava Nagler, austríaco que fugiu dos nazistas atravessando os Alpes, apenas um amigo que não sabia o que fazer com ele: que mais poderia acontecer num encontro de dois seres silenciosos? Se amava o mesmo homem para sempre? Fazia anos que ninguém a tocava. Passaram a conversar amiúde. Ela não se lembra de realmente ter sido uma mulher, em que um homem a desejasse, a tivesse em seus braços e a apertasse contra seu peito. Inconscientemente ela proibia a si mesma tudo o que tomasse aspecto de desejo. O casal se tornara cada vez mais próximo. Era uma jovem de 26 anos. Sempre havia comparado seu corpo a uma muralha, a única arma para se proteger. Se beijaram, embora alguma coisa no desejo dele a desagradasse. Até que ela cedeu.
Charlotte começou a sentir vertigens e a enjoar. Uma vida se infiltrara nela. Sim, ela estava grávida. Nagler ficou louco de felicidade, enquanto ela ainda precisava de um tempo para admitir que poderia ter uma vida feliz com um homem e um bebê. Ele queria se casar e oficializar o amor, declará-lo abertamente num mundo onde era necessário se esconder, tornar público na documentação oficial ser judeu e fornecer seu endereço – chega um momento em que não se suporta mais não existir. Sentiam-se em segurança, protegidos pela ocupação italiana, que não praticava a política da solução final, com os judeus afluindo a Nice e arredores.
Porém, em 8 de setembro de 1943, os italianos se renderam às forças aliadas. Os alemães assumiram a defesa da Itália, até para retardar o contragolpe direcionado a tirar a Europa das mãos do nazifascismo. Os judeus deviam e iam pagar caro por essa derrota. Um comando de caça foi recrutado na SS (organização paramilitar do nazismo) para liquidar com o único refúgio acessível da Europa. Os interrogatórios, de uma brutalidade ímpar, obrigavam os detentos a entregarem outros membros da família – cada judeu a mais era importante. Mulheres bonitas eram imediatamente esterilizadas para serem enviadas ao front e servirem de prostitutas aos soldados. Alguns tentaram fugir alcançando a Itália pelas montanhas; impossível para Nagler, que puxava de uma perna, e Charlotte, grávida de quatro meses. Cartas de denúncia chegavam em massa atrás de gordas recompensas, ainda havia franceses colaboracionistas prontos a prestar serviços. Bom par de anos que Charlotte morava ali, todo mundo a conhecia, verdade que o casal era discreto, senão eremita, mas um pequeno interrogatório cairia bem numa moça um pouco estranha. Quando os soldados a dominaram para levá-la, Nagler se deu conta de que não podia deixá-la partir com o filho deles e alertou-os: “eu também sou judeu, levem-me!”.
Foram embarcados num trem, direção Auschwitz, junto com loucos e velhos arrebatados de asilos, amontoados que nem gado; ai de quem fugisse ou reagisse, o vagão todo seria executado. Nagler já padecia de uma úlcera que lhe corroía o estômago e Charlotte temia que durante a longa viagem o bebê morresse. Os deportados desceram do trem esgotados e esfomeados, a neblina matinal impedia de se ver o campo de concentração, nem mesmo os cães que latiam. Apenas distinguiam uma inscrição acima do portão de entrada: o trabalho liberta. Nagler viria a morrer de fraqueza. Charlotte entraria num pavilhão, acompanhada de outras mulheres e crianças, onde se lia que iriam tomar banho. Deviam se despir, pendurar as roupas num gancho na parede e memorizar o número de seu cabide, até que as portas fossem bem trancadas, como numa prisão, e, do teto, despejado o gás que, inalado, as converteriam em números somados à solução final.
Quatro meses antes, o pai de Charlotte e a madrasta foram detidos na Holanda, sendo solicitado ao médico que esterilizasse mulheres judias e sobretudo as oriundas de casamentos mistos. Conseguiram fugir e ficaram escondidos até o final da guerra, quando tomaram conhecimento da morte de Charlotte. Arrasados, se sentiram culpados por tê-la mandado para a França aos cuidados dos avós. Choque maior foi descobrir que ela estava grávida e seu neto, no ventre, assassinado junto com a mãe em Auschwitz. Até que lhes chegou às mãos o legado de Charlotte, Vida? Ou Teatro?, uma vida em forma de obra, pondo-se a examinar os seus desenhos durante horas e notando que as lembranças iam de novo ganhando vida, podendo ouvir a voz de sua filhinha, ali entre eles, de quem haviam se distanciado desde 1939.
Como Alfred reagiria ao se deparar com Charlotte casada e grávida? Se não deviam ter se encontrado a sós mais do que três vezes! Nisso se constituía toda a beleza do projeto de Charlotte, até onde era vida? Até onde ia sua imaginação e o teatro entrava em cena? Quem poderia saber a verdade? Alfred foi para Londres em 1940, de onde nunca mais saiu. Não queria mais ouvir falar da Alemanha. Atravessou os anos 1950 procurando se livrar da angústia de ser um morto dentre os vivos, até que a madrasta de Charlotte o localizou em 1961 e enviou o catálogo da primeira exposição da obra de Charlotte, acompanhado de uma brochura com nota biográfica – converter-se-ia em livro traduzido em várias línguas e sua pintura disseminada pela Europa e Estados Unidos.
O sentimento de devastação por se inteirar da morte de Charlotte e de suas circunstâncias, quase 20 anos depois, não obstou seu fascínio pela originalidade total do formato da obra, além do seu aspecto emocional, compreendendo sua dimensão autobiográfica à medida que folheava as páginas do livro, até se descobrir. Um desenho, dois, o seu rosto por toda parte. Bem como as suas palavras, teorias, todas as conversas que haviam tido, uma verdadeira obsessão pela história dos dois, sequer imaginando ter tamanha influência sobre ela.
O que redundou numa prostração por vários dias, permanecendo deitado num sofá com os olhos abertos, preâmbulo de sua morte um ano depois, trajado de terno na cama, como se estivesse de partida para uma longa viagem, e com a brochura da exposição de Charlotte Salomon guardada no bolso interno perto do coração. O seu aspecto formal e circunspecto simbolizava que estava perfeitamente ciente da importância do encontro em espírito que, em breve, resgataria o que não pôde ser materializado na existência do casal, abrindo espaço para uma lenda inspirada em Vida? Ou Teatro? ao se distanciar completamente do que seria a vida real, que bem podia sinalizar a extinção do estigma da cadeia de suicídios na família de Charlotte com o Holocausto tomando o lugar da sucessão de tragédias.