Uma mãe que deixou saudades. O tipo da mãe que cultivou seus pintinhos debaixo de suas asas. Por amar, confortar e proteger, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na prosperidade e na adversidade, mantendo-se íntegra para ver os filhos crescerem e serem o que ela não pôde fazer.
Os convidados entram carregando a massa, o pão, os vinhos e os doces encharcados em ovos, colhidos de galinhas poedeiras. A homenagem é dirigida ao filho, que redireciona a mãe, em respeito às raízes que não se partiram, apesar do decurso do tempo e da distância, a anos-luz.
Eis que uma das mais xeretas escarafuncha gavetas a pretexto de procurar um abridor de lata, cada vez mais em desuso, e se depara com a toalha da mãe. Uma toalha de linho português de 70 anos e alguns remendos. Alva como uma virgem angelical, em quadrados que alternam o rendado e relevos bordados, um pouco calejada pela trajetória da família. Perdera o viço e a altivez, mas ainda causava espanto e impunha respeito.
Estendem-na por sobre a mesa. Um tapete mágico que convida o filho a viajar no Plano Espiritual e beijar as mãos de sua mãe, em louvação pelo que hoje é. Deu um pulo e voltou.
Quando abriu os olhos, a mesa já estava posta sob a luz de velas, que atrai os espíritos e a bem-aventurança, o bem-estar só alcançável pelos santos e justos no Céu. Obedientes, os pratos e talheres se arrumam no nhoque da sorte que agradece o mês vencido e abençoa o mês por vencer.
As mulheres tremeram nas bases. Cacarejam diante de tamanha tradição e da necessária liturgia que deve ser aplicada em todo paparico festivo que se presta. O alvoroço toma conta delas, cruzam-se braços e mãos no afã de servir o nhoque e comungar com o pão. Hóstia à mão, cadê o vinho? Que deleite observar o vermelho-escuro encher as taças e a imaginação, a ponto de despertar lembranças do aconchego familiar em torno do pai e da mãe que não estão mais aqui conosco, a criação voltada pro casamento, o desejo de encontrar um homem que a preencha, o anel de noivado, o vestido de núpcias em brocados contrastando com a toalha de linho rendada.
Insufla a fantasia de qualquer mulher que, em sã consciência, não soterra valores morais e espirituais transmitidos de geração para geração, nem sequer disfarça o peso da homenagem. Mas, equivocam-se no alvo. É à mãe.
Que atende a convocação como sogra e desce à Terra sem se materializar e se manifesta. Ao invés de puxar a orelha daquela que incorporou a nora, sem ela se aperceber, a faz tocar com a unha bem esmaltada na taça, no afã de servir-se, tirando-a do equilíbrio o suficiente para partir-se em mil pedaços, ao bater de leve na borda do prato. Interrompe-se a comemoração para se proceder à limpeza dos cacos espalhados pela mesa e pelo chão. O risco de se cortar era iminente.
Passa-se uma esponja e a mãe não deixa cair no esquecimento a sua presença soberana e matriarcal, a origem das origens, a vida passada a interferir na presente. Espíritos também podem ter uma recaída e sentirem saudades do apego ao filho querido.
O vinho é servido com todo o cuidado. Ao levantar a taça, a sogra faz sua mão tremer e despejar, manchando a toalha de sangue, empapando-a de tal forma que lembra a menstruação, quando a mocinha se torna mulher, apta a ser mãe.
O constrangimento remete-a ao silêncio, em reverência ao espírito da mãe, frustrada por não caber no corpo da nora, na vida que deixou de viver.