Diz-se que veio ao mundo a passeio quem tem marido rico, não precisa trabalhar, quer viajar sempre e só vive para comprar roupa. Ou é filhinho de papai rico e não pretende estudar muito, tampouco trabalhar, isso se não casar com alguém que vá tomar conta de sua vida vazia.
E assim vão levando anos e anos sem que nada de muito inspirado eleve suas atitudes a algo que mereça registro. Perfeitamente encaixadas na sua mecânica de vida, o tédio não se cria em sua companhia. Ao contrário, ai de quem mexer no que conseguiu esquematizar. Vira bicho! Podem eventualmente ir à igreja ou assistir a missas, para não dar na pinta de que estão destoando. Forçoso é não sair da faixa da normalidade.
Até que surge um acontecimento inesperado que rompe a camisa de força dos que vieram ao mundo a passeio. Um ente querido. Um acidente. Ou desaparecimento imprevisto. Como se a morte não fosse um mistério para partir nossos corações e aí tomarmos outro rumo! Como se pudéssemos manter as rédeas nas mãos, manipular quem está por trás de nós ou que tudo prosseguirá como antes.
Tem que ser sempre uma desgraça? Perguntam os que sonham com paz e amor reinando por sobre nossas cabeças, se o mundo é divino e maravilhoso como sereias, musas e anjos trombeteiam. Se não for uma fatalidade, os que vieram a passeio não despertam do desejo irresistível de dormir e torcer para que as pás do moinho continuem a girar na indolência habitual, sempre no mesmo sentido. Para não mudar o que aparentemente está dando certo.
Quando necessitamos da reencarnação de Dom Quixote para voltar a defender causas no interesse de todos, até para desvincular seu nome de bravatas, de um romantismo démodé, desligado da realidade ou por se tratar apenas de uma obra da ficção.
Pode ser gostoso e divertido vir ao mundo a passeio e não esquentar com questões outras que venham a pesar em sua consciência, mas é um tremendo desperdício não explorar as mágicas das profundezas da alma optando pela superfície. Como se fora um náufrago, cuja preocupação primeira é flutuar para depois buscar a salvação. Um porto seguro.
E a quem é garantido um porto seguro? Se a alma for pequena e não avançar, um dia a casa cai. Não se tem notícia de que castelos resistiram. Império que não soçobrasse. Reino intacto? Só em conto de fada. Famílias se desintegram. Um filho teu não foge à luta. Se a bandeira jaz inerte no campo de batalha, há que se investir na alma de um soldado que irá levantá-la e se embrenhar no fogo cruzado para cravá-la no monte de São Salvador, com a sensação de missão cumprida.